terça-feira, 20 de julho de 2021

Haikai do Viandante (414)

James Whistler, Nocturne: Blue and Silver-Cremorne Lights, 1872

 A luz sobre as águas
traz a memória da noite.
O mundo adormece.

sábado, 17 de julho de 2021

O sal do silêncio (64)

Frederick Sommer, Rock, Utah, 1940
O trabalho silencioso da natureza esculpe os mais inesperados objectos, retira-os da matéria-prima indiferenciada e configura-os para que, chegada a hora, se abram para os olhos espantados dos homens. Essa escultora secreta nunca pára o seu trabalho, como se fosse animada pela esperança vã de que sempre haverá olhos humanos para contemplar os seus artefactos.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Impressões 83. Reflexos da eternidade

Edward Weston, Near Neshanic, New Jersey, 1941

Há lugares onde o tempo parece ter suspendido o seu caminho. Neles reflecte-se a eternidade. São paisagens sóbrias que se escondem dos olhares ímpios, incapazes de perceber a sacralidade que ali se manifesta, o que por detrás da natureza e da humanidade espreita através delas. 
 

domingo, 11 de julho de 2021

A Sarça Ardente - 86

Vincent van Gogh, Road with Cypress and Star, 1890
A casa onde o lume se guarda
abriu-se
e o espírito soltou-se
sobre o silêncio
que leva da infância à sabedoria.

A grande viagem pelo oceano
ilumina-se
nesse fogo de Pentecostes.
No navio, olhamos
o céu e descobrimos a Estrela Polar.

Julho de 2021

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Meditação Breve (162) Viver na terra

August Sander, Peasant woman, 1914
A terra oferece a quem lhe dedica a vida um humor compassivo e uma funda sabedoria. Não aquela que nasce dos livros, mas uma outra que permite compreender o que neles está. Quando as mãos repousam, o olhar ri não sem uma leve ironia e o coração abre-se à serenidade da existência.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Haikai do Viandante (413)

Fernand Khnopff, At Fosset Under the Fir Trees, 1894
Ouve-se o silêncio
entre as sombras da floresta.
Os deuses esperam.

segunda-feira, 5 de julho de 2021

O sal do silêncio (63)

Francesca Woodman, Untitled, 1975-80
A ruína da casa, a queda no abismo, o olhar espantado num corpo em perigo. No silêncio nascido da expectativa habita a esperança e o terror, o desejo se suspender o tempo e, por encanto, voltar ao lugar de onde tinha saído.
 

sábado, 3 de julho de 2021

Biografias 21. O homem do marisco

 Francis Wu, Shellfish Catching at Dawn, undated
Não tinha nome, pelo menos ninguém o conhecia por outra designação que não a do homem do marisco. Ele própria duvidava se alguma vez lhe fora dado um nome. Toda a sua vida se circunscrevia à função que tinha. Levantar-se cedo, apanhar o marisco, distribuí-lo, descansar, para no outro dia tudo recomeçar. Os grandes momentos da sua existência eram aqueles em que olhava as águas e se via nelas reflectido. Tinha a esperança que a sua imagem ganhasse vida e viesse desse mundo líquido para o ajudar. Nesse momento, dar-lhe-ia um nome e os dois passariam a ter um nome.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

A Sarça Ardente - 85

Caspar David Friedrich, Summer, 1826
Chegou o tempo do lume,
do sol incandescente
sobre as paixões do corpo,
dos fogos matinais
a arder na floresta
branca da memória.
Chegou o tempo de a sarça
arder na claridade
do dia, na sombra da noite.

Julho de 2021

terça-feira, 29 de junho de 2021

Impressões 82. A paisagem agreste

Albert Gleizes, Paisaje, 1914

De súbito a paisagem fende-se, o olhar geometriza-se e aquilo que o hábito dava a ver como a realidade torna-se agora numa impressão. Não numa mera impressão difusa, de contornos esbatidos como se fosse um esboço, mas uma impressão viva de arestas cortantes, agrestes, prontas para fazer sangrar o incauto que entre sem permissão pela paisagem dentro.

domingo, 27 de junho de 2021

Arqueologias do espírito 25

Alfons Mucha, El Abismo, 1897-1899
Antes de a queda se ter constituído como um topos, topos negativo e ameaçador, da vida do espírito, ter-se-á insinuado um outro e poderoso arquétipo, o do abismo. A experiência dos precipícios, dos buracos de onde não se regressa, dos despenhadeiros e das profundidades insondáveis, tudo isso se concentrou na figura do abismo. Do abismo físico transbordou para o abismo da alma e do espírito e tornou-se, como todos os símbolos, ambivalente. Repele o homem com o medo da queda e atrai ao esconder o insondável. Toda a queda no abismo é marcada pelo temor e pelo desejo de ali cair.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

À procura do lugar

August Sander, Courtyard Musicians, 1928
Os músicos vestiam-se com o esmero exigido pelas grandes salas e no pensamento havia ainda uma réstia de esperança, o desejo de um milagre, um sonho que teimava em persistir noite após noite. Traziam sobre os ombros o peso de uma vida, as ruas por onde vaguearam à procura de um lugar para a sua música. Pátios, praças, esquinas de rua, grandes avenidas, vielas de frequência duvidosa. Paravam e começavam o recital. Havia quem os olhasse de soslaio, quem parasse um instante, quem deixasse cair uma moeda, quem passasse indiferente. Então, retomavam o caminho à procura do lugar onde a sua arte seria sublime e a sua música se confundiria com a das esferas celestes. Quando o vislumbraram, entraram num labirinto e perderam-se no caminho.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Haikai urbano (68)

Paul Himmel, Brooklyn Bridge View, 1950

Da ponte, um anjo
vigia o fluir das águas.
 Cidade sombria.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

A Sarça Ardente - 84

Francisco Díaz de León, Canción de verano, Aguascalientes, 1955
O dia desenha uma elipse
ao envolver
de luz
o rumor das ruas.

Desbaratada, a sombra
esconde-se
sob a copa
verde das tílias.

Quem chega à janela
pensa ver
o mar
na cinza do horizonte.

Depois, tudo se funde –
a luz, a sombra,
as tílias –
o solstício de Verão.

Junho de 2021

 

sábado, 19 de junho de 2021

Biografias 20. A esperança que a move

Irving Penn, Vogue cover, 1950
Foi um longo e doloroso exercício. A partir do momento em que a beleza começou a decrescer, resolveu apagar-se. Como não era dada a gestos teatrais, recusou a ideia de suicídio. Concentrou-se apenas no seu corpo, meditando continuamente na invisibilidade. A primeira vitória foi alcançada quando descobriu a palidez que se apoosava dela. A segunda veio ao notar como estava translúcida. Se o corpo de tornasse transparente, a biografia haveria de desaparecer, pensou. Ainda é essa a esperança que a move.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

O sal do silêncio (62)

Andreas Feininger, Silhouette of the Statue of Liberty lit only by her torch, 1943
O mais intrigante dos mistérios humanos é o da liberdade. Como é que num universo regido pela estrita determinação emergiu um ser dotado de vontade livre? Nunca deixa de espantar como na escuridão silenciosa da necessidade emergiu o sal luminoso da liberdade.

sábado, 12 de junho de 2021

Meditação Breve (161) Auto-retrato

Florence Henri, Self portrait, 1928

Auto-retratar-se é pôr-se à distância, afastar-se e alienar-se de si mesmo. Pensa-se, por vezes, que o exercício do auto-retrato é um modo de conhecimento de si. Essa crença, porém, não passa de uma ilusão da consciência reflexiva. Procura-se a ignorância de si mesmo, pois o retrato não é a própria pessoa, nem dá dela a sua realidade. Pelo contrário, aniquila-lhe o corpo, prende-a no espaço, retira-a da duração e esconde-lhe o espírito. 

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Diálogos morais 61. Um cavalheiro de indústria

Modesto Ciruelos González, Abstracción, 1975
- Olha, estás a ver o que se passa?
- Não estou e não quero ver.
- Apesar de tudo, nunca deixas de ser desagradável.
- De tudo, o quê?
- Do carro, do casaco, do dinheiro, enfim.
- Não te agrada? Podes despir o casaco e ires a pé.
- Tanto esforço e nem um vislumbre de cavalheirismo.
- E depois?
- Um pouco de gentileza e o mundo seria melhor.
- E achas que eu estaria aqui sentado, se fosse gentil?
- Nunca deixaste de ser um cavalheiro de indústria.

terça-feira, 8 de junho de 2021

A Sarça Ardente - 83

Edward Burne Jones, El Lamento, 1866
A música dos dias luminosos
ondula tocada
pelo vento.

Os acordes tremem,
são folhas
de árvores cobertas

pelo ouro nascido
da hesitação
entre som e silêncio.

Junho de 2021

domingo, 6 de junho de 2021

Micronarrativa (53) Encostado à parede

Dorothea Lange, Against the Wall, San Francisco, 1934
Exausto, virou o carro-de-mão e encostou-se à parede. Estou derrotado, disse. Também eu luto diariamente com o anjo. Também me deram o nome de Jacob, mas não foi a minha coxa tocada pelo adversário, foi todo o corpo. Por isso, não recebo a bênção, nem tomarei o nome de Israel, nem de mim sairá uma nação. Serei um grão de areia no deserto. O anjo que me calhou não era o anjo de Deus, mas aquele que se apodera dos homens para os encostar à parede e perdê-los.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Biografias 19. A mulher da máscara

Man Ray, Noire et Blanche (Black and White), 1926

Foi uma longa e vagarosa viagem. Não é fácil vir da periferia e chegar ao centro de si mesmo. Exausta, ela parece dormir, mas não é verdade. Apenas pensa como foi difícil arrancar a máscara que sempre trouxera para deixar que o rosto, o seu próprio rosto, se manifestasse e se abrisse para os olhos de quem o quisesse ver. Não há metamorfose, medita, que não deixe à porta da morte e da ressurreição.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Histórias sem nexo 26. Irina e Irene

Vincent Van Gogh, Duas mulheres no bosque, 1882
Irra, Irina, não ias à igreja e imaginavas hibernar em ímpia hierarquia ou em impávido império, ó infeliz idólatra. A Irene, impoluta irmã, imiscuiu-se na hipertrofia da irresponsável ilusão e, com ímpeto, idealizou o isco para te impedir a impiedade, a ida hílare para o hiante inferno. 

segunda-feira, 31 de maio de 2021

O sal do silêncio (61)

Marc Chagall, The Flying Carriage, 1913

A fantasia nasce por dentro do silêncio. Quando o espírito detém o torvelinho dos reflexos da vida quotidiana e deixa a mente apaziguar-se, então as mil imagens recebidas ao acaso começam a estabelecer estranhas relações, até que novas realidades, nascidas do secreto prazer da hibridação e da metamorfose, se tornam o sal da vida.

sábado, 29 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 82

Albert Bloch, Mountain, 1916
Maio é um Verão indeciso,
a escarpa benévola
por onde subo
a montanha para perscrutar
a linha do horizonte.

Chegado ao cimo, olho
a flora selvagem,
caminho ao acaso e colho
os frutos silvestres
do silêncio e da solidão.

Maio de 2021

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Haikai do Viandante (412)

Rolando Sá Nogueira, Chuva, 1960
Como a fria névoa
a chuva desce dos céus.
Dádiva dos deuses.



terça-feira, 25 de maio de 2021

Impressões 81. A presença encarnada

André Kertész, Soldier writing, Gorz, Austria (now Italy), 1915
Nesse acto de escrever uma carta, suspende-se a única realidade que assombra um soldado em tempo de guerra. Nesta, a morte não é uma abstracção que por vezes toma corpo em alguém conhecido. Ela é a presença encarnada de cada hora.

domingo, 23 de maio de 2021

Meditação Breve (160) O tempo em fuga

Paul Strand, Bombed Church, Hoste, Moselle, France, 1950
Sempre que pensam na imortalidade, os homens tentam, não sem desespero, matar o tempo, como se o maior inimigo dessa persistência que nunca acabaria fosse o saltitar inexorável dos ponteiros do relógio. Sucedem-se os ataques. Os atentados não têm fim. Os danos colaterais amontoam-se. O tempo, esse nunca pára, faz da fuga a arte da existência.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

O sal do silêncio (60)

Maria Helena Vieira da Silva, Casas, 1957

Casas são segredos a crescer entre os murmúrios da rua, são enigmas onde se escondem os ardores da noite, são mistérios que se abrem na luz e na sombra. Casas são o aroma do sal perdido no fogo do silêncio.
 

quarta-feira, 19 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 81

Paul Cézanne - As grandes banhistas (1900-1905)
De súbito, um som de água
fende o silêncio,
o coração estremece,
o vento dança nas folhas das tílias.

A Primavera abre-se ao fulgor,
os dias tocados pela aura
do sol
crescem por dentro da alma.

Oiço um violino e nele escuto
o vento, o sol
o cântico de alegria
das almas ébrias da madrugada. 

Maio de 2021

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Haikai do Viandante (411)

Max Baur, Im Nebel, 1930
 Névoa sobre névoa,
o mistério da manhã
nas águas do rio.