sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

O sal do silêncio (33)

Deborah Turbeville, Krakow - W Magazine, Cantor Theater, Poland, 1997
Chega de súbito esse momento, cujo nome nunca nos é revelado. A vida suspende-se, os gestos permanecem inacabados e o silêncio arrasta para a eternidade aquilo que fora feito para se extinguir  sem rasto na teia do tempo.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Impressões 43. Uma árvore

Bill Brandt, Deserted Street in Bloomsbury, 1942
Se houvesse uma árvore para vibrar sob os golpes do vento ou para nela um pássaro poisar, menos deserta seria a rua e o silêncio teria ramos e folhas verdes para o acolher quando, em sobressalto, sobre a noite caísse.

domingo, 8 de dezembro de 2019

A mulher perdida

Diane Arbus, Woman at a counter smoking, NYC, 1962
Sentava-se ao balcão, pedia uma bebida e ficava ali. Olhava em frente, para qualquer coisa que só ela via. Depois, levantava-se e saía. A princípio não estranhei. Com o passar do tempo, comecei a esperar por ela. Se se atrasava, ficava ansioso. Não, não estava apaixonado, mas aquela presença dava sentido à minha vida. Disseram-me que tinha perdido tudo. Registei a informação. Um dia, ganhei coragem, e abordei-a. Ouvi dizer que perdeu tudo, disse-lhe. Olhou-me e uma sombra velou-me o olhar. Sim, perdi tudo. Perdi-me de mim e não sei quem sou. Esqueça-me. Porquê? Para que lhe serviria uma mulher que não sabe quem é? E se soubesse quem era servir-me-ia para quê?

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Diálogos morais 29. Sentido

Josef Sudek, St. Vitus cathedral, Prague, Czech Republic, ca. 1926-27
- Para que serve tudo isto?
- Para nada.
- A vaidade dos homens ou o medo perante o desconhecido.
- Está enganado. 
- Não me disse que tudo isto não serve para nada?
- Disse, mas aqui fui baptizado, aqui casei. Aqui baptizei os meus filhos e os meus netos.
- E precisava disso para viver a sua vida?
- Não, mas talvez a vida só ganhe sentido pelas coisas que não servem para nada.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

A Sarça Ardente - 3

Gertrude Käsebier, The Sketch, 1903

O ardor ao tocar-te
a face
queima-me a pele
dos dedos.

Sorrio na memória
dos dias de calor.

Ao ver-te
tudo era água
na imaculada
maresia da manhã.

Novembro 2019

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Diálogos morais 28. Equívocos

Alfred Stieglitz, Shadows in Lake, 1916
- Somos nós?
- Talvez.
- Queria perguntar se era a nossa sombra.
- Queria responder que talvez fôssemos mesmo nós.

sábado, 30 de novembro de 2019

O sal do silêncio (32)

Lucien Clergue, Nu zébré, 1997
O silêncio é uma longa hesitação entre o claro e o escuro. Quando se torna mais denso e profundo, luz e trevas repartem-se e formam um corpo de onde, como um clamor vindo da terra, brota o desejo mais puro.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Haikai do Viandante (383)

Caspar David Friedrich, Doorway in the Fürstenschule Meissen, depois de 1835
A porta separa
a rua do sobressalto
em que te espero.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Micronarrativa (27) Mulher sentada

Emil Otto Hoppé, Seated Woman in Profile, 1928
A espera tranquila do que há-de vir. Sentada, põe no futuro toda a sua expectativa, sem saber o que lhe está destinado. O negro com que se veste é um indício do que passou, mas toda a dor se abre para o desejo de um novo júbilo, enquanto o coração, em segredo, percorre a via sacra que vai da elegia à ode triunfal.

domingo, 24 de novembro de 2019

A Sarça Ardente - 2

A nuvem da noite
flutua à luz
dos candeeiros.
Sobe, desce
tocada pelo vento
tocada pelas tílias
erguidas na
névoa de Novembro.

Novembro de 2019

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O sal do silêncio (31)

NASA - Mimas Stares Back
Não, o silêncio não é as trevas do mundo sonoro. O silêncio é a possibilidade de todas as palavras encontrarem o sal que lhes dá um sentido e as encaminha para os ouvidos que as esperam.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Meditação Breve (116) Coreografia e encenação

Elliott Erwit, Paris, 1989
Quando se reduz a vida social à sua essência o que fica é a coreografia e a encenação, são elas que suportam esse grande baile que é a vida em comum, seja na praça pública ou na comunhão de um beijo.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Diálogos morais 27. Complicar

Brassaï, Bal Musette des Quatre-Saisons, Rue de Lappe, c.1932

- Vamos sair?
- Daqui?
- Sim.
- Mas a nossa saída não era precisamente vir aqui?
- Bem, era...
- Ou estás a tentar-me?
- Não compliques.
- E por que razão hei-de facilitar?

sábado, 16 de novembro de 2019

Impressões 42. Tempestade

Ansel Adams, Thunderstorm over the Great Plains, near Cimarron, New Mexico, c. 1960
É no vazio e no silêncio que se deve esperar a tempestade. Assim poder-se-á ouvir o ribombar do trovão e ver a rápida luz do relâmpago. Então, o espírito toma corpo e, ao encarnar, dilata-se e caminha sobre a terra.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

A Sarça Ardente - 1

Observo o silêncio
na chuva,
oiço a cintilação
das gotas
degoladas na calçada.

O céu relampeja
e na casa
onde me esperas
a noite
descansa desabrigada.

Novembro 2019

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Meditação Breve (115) Verdade

Francesca Woodman, Space 2, 1976
Não basta o silêncio, é preciso ocultar o corpo e dissolver a sombra para que, lentamente, a verdade se desentranhe e flutue diante do olhar atónito do espectador.

domingo, 10 de novembro de 2019

Haikai do Viandante (382)

Josef Sudek, Bud of a white rose, 1954
Um botão de rosa
esconde-se em silêncio.
Quase, quase flor.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A mulher de braço florido

Irving Penn, Woman with Roses on Her Arm, 1950
Naqueles dias em que o mundo, depois de ter desabado, parecia ter um futuro pela frente, ela era a mais elegante das mulheres da roda em que vivíamos. De certa maneira, todos os homens a cortejavam, uns mais exuberantes, outros mais dissimulados. Ela sorria. Nunca a cortejei, mantive dela uma certa distância, escudado numa formalidade já inabitual naquele tempo. Um dia estava ela no vão de uma janela do clube que frequentávamos e o sol iluminava-a de uma forma estranha. Estava belíssima. Cheguei perto dela, olhou-me e sorriu. Perguntei-lhe sem mais se queria casar comigo. O braço dela floriu quando o toquei com os meus dedos. As crianças que ali vê a brincar são as nossas netas.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Haikai do Viandante (381)

Paul Strand, The Scythes, Luzzara, Italy, 1953
O tempo que passa
pela mão do lavrador.
O sonho da terra.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Diálogos morais 26. O bem e o mal

Garry Winogrand, Los Angeles, 1964
- Não dizes nada?
- ...
- Quem julgas que és?
- Cala-te, por favor.
- Por que hei-de calar-me?
- Parto-te o nariz outra vez.
- Achas bem?
- O teu mal é o meu bem.

sábado, 2 de novembro de 2019

O sal do silêncio (30)

Lord Snowdon, British royal Princess Margaret, Countess of Snowdon, 1967
A sombra é um silêncio de onde brota a clara claridade da luz. Se por instantes a olhamos de frente, logo todo o nosso ser retrocede para aqueles lugares onde a luz se dissimula e nos oculta tudo o que há de terrível na beleza.

domingo, 27 de outubro de 2019

Meditação Breve (114) Monstruosidade

Wolf Strache, Kurfürstendamm After a Major Air Raid, Berlin, 1942
O que é a guerra? É o tempo em que até a mais pacífica das pessoas ou a mais benévola das mães se transforma num monstro. Num tempo desses, a monstruosidade não é o mero produto da perda da razão. Pelo contrário, é o imperativo que a razão, como técnica de sobrevivência, impõe ao mais sensato dos mortais. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Meditação Breve (113) Uma sombra

Frank Eugene, Emmy G. 1900-1908
Em toda a expectativa existe uma sombra de desilusão. Conforme a esperança se desvanece, a sombra cresce até que a noite cai e encerra o desejo no cofre-forte do impossível.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Haikai do Viandante (380)

Jerry Schatzberg, Vogue, January 1959
Sob a luz do sol,
chegas como uma sombra,
um rumor na areia.

sábado, 19 de outubro de 2019

Micronarrativa (26) Fim

Lee Miller, Woman with hand on head, 1932
Agora tudo terminou. Dantes, para compensar a perda, recorria a um adágio despropositado. Só termina o que nunca começou. Usava-o para me iludir, para negar a realidade. Os anos passaram e os aforismos não conseguem já ocultar a verdade. Partiu e eu não posso negar nem o começo nem o fim. Dói-me a cabeça. Talvez a realidade seja demasiado dura para bater com a cabeça nela. Só termina aquilo que um dia começou.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Poesia do Viandante (744)

Modest Cuixart - Arbre d'Euret (1991)
744. a sétima árvore

a sétima árvore
brotou
do musgo
ao sétimo dia
e nela
descansou deus
do cansaço da criação

(29/12/2016)

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Meditação Breve (112) O Cavalo de Tróia

Lovis Corinth, The trojan horse, 1924
Uma ilusão pensar-se o Cavalo de Tróia como o artefacto que um inimigo externo colocará à nossa porta para que, seduzidos, o levemos para nossa casa e abramos o caminho para a derrota. Ao sermos concebidos, o Cavalo de Tróia é de imediato parte da nossa herança. Só não sabemos a hora em que o inimigo salta de dentro do seu ventre e nos arrasta para a ignomínia da derrota.

domingo, 13 de outubro de 2019

O sal do silêncio (29)

Hiroshi Sugimoto, Sea of Buddha, 1995
Em silêncio, os Budas meditam sobre o mar da tranquilidade. E conforme a meditação progride, as ondas agitadas que arrastam os homens serenam. Então, nas água imperturbadas, os homens flutuam sem saber que são homens nem que é a serenidade que os conduz.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Pintura e haikus (14)

Marino Marini, Acrobats, 1960
Silêncio azul,
acrobacias de água:
Anjos no jardim.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Diálogos morais 25. Olhar para trás

Rodney Smith, Elena and Jessie, 1999
- Não olhes para trás.
- Porquê?
- Ela está a espiar-nos.
- Sim, é a maneira de a apanharmos em flagrante.
- Nem pensar, é um perigo.
- ...
- Se olharmos para trás, transforma-nos em estátuas de sal.