quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Chegar a casa

Cecil Beaton, Dorian Leigh, Vogue, 1950

Apoiou os braços e nestes, a cabeça. Estava exausta. Tinha vindo de longe, de tão longe que esquecera o sítio de onde partira. Talvez fosse de uma casa na montanha ou de uma cidade perto do oceano. Todas as suas memórias tinham começado a dissipar-se. Era como se uma pedra dura, de repente, se desfizesse em grãos de areia microscópicos, e estes, quase um fluido, escorressem entre os dedos. Assim, perdia ela os pormenores da sua vida, o nome dos pais, a face dos homens que amara, o lugar onde nascera. Vívido, apenas o buraco negro por onde entrara e a luz que agora a iluminava. Uma voz sussurrou-lhe: chegaste a casa.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Biografias 15. A rapariga que sorri


Ela cruza os dedos, respira fundo e sorri. E no sorriso habita o silêncio que se esconde no fundo do seu coração. Esperam sempre qualquer coisa de mim, pensa, mas nada mais tenho a dar do que o meu sorriso. Pega numa garrafa, abre-a em silêncio e sorri.

Fotografia: Sergio Larrain-Magnum, Limón Soda, Valparaíso.

domingo, 19 de agosto de 2018

Poemas do Viandante (683)

Frantisek Kupka, Trazos negros enroscados, 1911-12

683. espirais volutas e fogo

espirais volutas e fogo
o suão vibra
no vitral
do meio-dia
na rosa-dos-ventos
nas asas da borboleta
coberta de sol
coberta de míngua

(20/12/2016)

sábado, 18 de agosto de 2018

Meditação breve (78) Mistério


O prazer que extraímos do mistério reside na derrota da razão. Não existe apenas a satisfação do triunfo, quando um enigma é decifrado. Aquilo que resiste aos avanços do nosso entendimento também provoca não pequena volúpia.

Pintura: Alphonse Osbert, El misterio de la noche, 1897

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Haikai do Viandante (357)


Nuvens sobre o lago.
Sombras deslizam nas águas.
Promessas de Outono.

Pintura: Nikolay Dubovskoy, Calm, 1890

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Biografias 14. A mulher do último café

Charles Hewitt, Night Time Coffee, London, 1952

Era sempre a última cliente. Chegava como uma sombra. Pedia um café, bebia-o em silêncio, enquanto olhava os jogos de luz que se desprendiam da iluminação pública. Passados minutos, sem que dissesse uma palavra, tirava umas moedas de uma bolsa velha e gasta e depositava-as distraída sobre o balcão. Então, partia num passo hesitante, como se não soubesse o caminho até que se fundia na escuridão da noite.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

O deserto

Jean Dieuzaide, Sahara, vue aérienne, 1965

O deserto cresce. É tão tentador citar: 'O deserto cresce, ai daquele que oculta desertos.' Ninguém tem o poder de ocultar um deserto, nem tão pouco o deserto que traz dentro de si. Antigamente, havia quem fosse para o deserto para estar mais próximo de Deus ou para combater o demónio. Uma arena para grandes combates metafísicos. Aquele que traz o deserto em si, esse não precisa de nenhum deserto material. Senta-se na sua solidão e espera a hora em que o demónio se entrega nas suas mãos ou Deus, envolto numa sombra, se senta ao seu lado. O deserto cresce.

terça-feira, 19 de junho de 2018

Poemas do Viandante (682)

Amadeo de Souza Cardoso - Quadro (1912)

682. prímulas e margaridas

prímulas e margaridas
amadurecem
na paisagem pisada
pela luz venal
do verbo
cantam
perdidas no sonho
do jardineiro
preso à tesoura da morte

(20/12/2016)

sexta-feira, 8 de junho de 2018

A estátua

Nelly’s, Girl from Ipati, Greece, ca. 1930

Se o acontecimento é extraordinário, as razões que a levaram aquela decisão são misteriosas. Não lhe faltavam os dons que atrairiam sobre ela as maiores felicidades. Bela, poderia escolher o homem que quisesse e a vida que mais desejasse. Tinha uma índole jovial e não lhe faltavam amizades. Tão pouco nascera num lar sem fortuna. Quando viu, pela primeira vez, a estátua de pedra, gritou. Depois, silenciou-se. Uma noite, viram-na colocar-se ao lado da estátua, imitando-lhe a pose. Na manhã seguinte, continuava lá. Enlouquecera, pensaram. Quando no dia seguinte a avistaram, alguém foi ter com ela. Tocou-lhe. A sua carne, porém, era um mármore frio e pálido. 

quinta-feira, 31 de maio de 2018

Haikai do Viandante (356)

William Henry Fox Talbot, The Pencil of Nature, London, 1844

O silêncio passa
pela escada do tempo.
Sombra e solidão.