quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Intimação

Otto Steinert - Call, 1950

A vida do espírito começa com um chamamento. Este dá-nos a dimensão da alteridade, do outro, daquele que toma a palavra e, com a sua voz, no chama. Esses outro que nos chama, contudo, não está, necessariamente, fora de nós. Esse outro podemos ser nós. Quando esse outro, que somos nós, nos chama, então é porque temos uma vocação. Se o chamamento vier de fora, ele não passe de uma solicitação. Se vier de nós, então estamos perante uma intimação. Somos intimados a responder.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Haikai urbano (26)

Artur Pastor - Cais das Colunas, Lisboa, 1950-69

No cais das colunas,
Lisboa perde-se nas águas.
Tejo, a luz do mar.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Haikai do Viandante (343)

Jeanne Carbonetti - Bétulas no Inverno (1997)

As bétulas despem-se
no silêncio do inverno.
Um ramo caiu.

domingo, 12 de novembro de 2017

O sopro do vento

Wolf Suschitzky - Milkman, Charing Cross road, London, 1935

Uma das formas de resistência que os seres humanos opõem ao espírito é a nostalgia. Olham o passado, paradoxalmente, como uma promessa de um mundo melhor. Na verdade, o que vêem são apenas simulacros desse passado despidos da sua vida real e de todo o trágico que ali houve. Essa saudade evita o exercício da escuta. O que devemos escutar? A resposta é simples: o vento. O vento sopra onde quer e nele repousa a energia, a virtude e a vontade do espírito.

sábado, 11 de novembro de 2017

Poemas do Viandante (660)

Jesús María Cormán - White event N.º 8 (2000)

660. espuma escorre

espuma escorre
tocada
pelo carbúnculo
do desejo
fio de água fiado
na roca do oceano
as mãos vazias
e
quase puras
tão puras as mãos do tempo

(16/12/2016)

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Evocações

Deborah Turbeville - Isabella at École Des Beaux Arts, Paris, 1977

Quando o espírito mergulha na evocação, como acontece nesta fotografia de Deborah Turbeville, nunca é com a finalidade de rememorar o passado ou, tão pouco, de o comemorar. A evocação não é um jogo memorial mas, antes, uma reconfiguração de elementos dispersos, que, de súbito, se unem para nos darem a ver uma presença inédita num presente nunca vivido. Evocar não é convocar o passado mas promover o presente.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Intimidade

Giorgio de Chirico - Entrevista (1927)

Naquilo a que se dá o nome de intimidade não existe apenas, e ao contrário do que muitas vezes se pensa, o que é mais próprio, autêntico e verdadeiro. A intimidade é um espaço de negociação entre o público e o privado, entre os desejos e afecções subjectivas e as convenções exteriores. A fronteira entre o íntimo e o público é de tal maneira porosa que, muitas vezes, se perde a noção daquilo que se deve reservar e aquilo que se deve ostentar. O segredo não é intrínseco à intimidade, mas resulta de uma conduta que exige esforço e persistência.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Vórtice

Francesca Woodman - Space², Providence, Rhode Island, 1975-1978

Tudo começou com uma pequena turbulência. Inexplicavelmente, aquele ponto do quarto parecia atravessado por correntes de ar vindas não sei bem de onde. Em vez de abrandarem e de desaparecerem, foram-se tornando mais vivas, até que um vórtice silencioso rodopiava à minha frente. Primeiro, foi uma sombra. Depois, qualquer coisa, talvez um espírito, ganhou contornos. Com o rodopiar, esses contornos preencheram-se. Eram um corpo, o teu corpo, ainda jovem e belo. Perguntei-te o nome, mas não sabias falar. Tive de te ensinar, para que me pudesses contar a tua história e falar desse lugar de onde fugiste naquele dia nunca por mim lamentado.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Haikai urbano (25)

Deborah Turbeville - Vera Abrusova, Stroganov Palace, 1996

Uma borboleta
sonha sombra e solidão.
Um rumor de ruína.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Poemas do Viandante (659)

Willem De Kooning -  Puerta al río (1960)

659. o vístula e o danúbio

o vístula e o danúbio
são rios
e valsam na calçada
a valsa dos
afogados
pedra ante pedra
bate a água
no barco
a balançar ao desvario
a rugir de
margem em margem

(15/12/2016)

domingo, 5 de novembro de 2017

Meditação breve (56) Fotografia

Kurt Hielscher - Albarracín, Spain, 1925

O que é uma fotografia? Uma fotografia é um desejo. O desejo de sair do tempo e entrar na eternidade. Eternamente, o cigarro fica suspenso, na mão daquele homem, sem chegar aos lábios. Eternamente, aquele rapaz e aquela mulher ficam sob o arco que anuncia uma entrada. Eternamente, aquela casa... Um desejo, por intenso que seja, não é, contudo, a realidade. A fotografia é um desejo nunca consumado, uma travessura de Eros, esse deus irrequieto e zombador.

sábado, 4 de novembro de 2017

Haikai urbano (24)

Ernst Ludwig Kirchner - Prostituta che si offre (1914)

Na rua se oferece
a quem se vende comprando.
Sonoro silêncio.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Naturezas mortas

Frances Murray - Rebecca-Tree, 1992

Não posso dar melhor conselho. Devemos ter cuidado com o que nos fascina. O fascínio é sempre a contraparte de um desejo. Um dia, ao maquilhar-se, ela notou um insólito risco ondulado no queixo. Tentou apagá-lo. Em vão. Conformou-se, quase de imediato, não sem secreto júbilo. Algum tempo depois, aquilo que parecia o desenho de um tronco cresceu desse traço até ao lábio. Aguardou com ânsia o que viria a seguir. A realidade não lhe frustrou a expectativa. Na pele do rosto, nasceram os ramos de uma árvore e expandiram-se para além dos contornos. Nunca o lamentou. Olhava-se ao espelho e não queria crer, ela, a quem sempre as naturezas mortas fascinaram, tinha alcançado a verdade escondida no fundo do seu desejo. Quando chegava a Primavera, cobria-se de folhas e todo o seu corpo irradiava luz. Cheguei a desejá-la.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A ponte do diabo

Charles Clifford, Devil’s Bridge, Martorell, Catalonia, 1860–61

A história é essa, tem toda a razão. Sei-a desde a infância. Ouvi mil vezes o motivo por que lhe chamam a ponte do diabo. A narrativa perde-se na noite medieval. Fascinou-me, é verdade, mas acabou por deixar de me interessar. Se alguém me pergunta a razão do nome da ponte, nunca conto a história original. Invento sempre uma nova explicação. Não pense que o faço por desprezo pela verdade. Pelo contrário, é porque estou comprometido com ela que invento as histórias. Não percebe? Não é difícil, se imaginar as mil maneiras que o diabo tem para fazer a ponte para o coração dos homens. Nunca falo da mesma ponte, embora ela seja sempre a mesma.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Poemas do Viandante (658)

Aubrey Williams - Cosmic Storm (1977)

658. a tempestade cósmica

a tempestade cósmica
cola-se
ao vento frio
sopra do verso
                e
                tempestua
e voa
                pássaro de fogo
sagrado
na sagração da primavera

(15/12/2016)

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Haikai do Viandante (342)

JCM - Auto-retrato IX. Serra de Aire, 2007

Se chega o crepúsculo,
sou sombra da minha sombra.
A tarde entardece.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Meditação breve (55) - Mundo

JCM - My foolish world (2007)

O mundo é sempre um exercício persistente de ascese e de atenção. Sem esse exercício o que temos é o caos, a indefinição, o fim das formas num mar informe. Aquilo que vemos tão definido e exacto é o resultado de uma aprendizagem que o espírito, a princípio levado por uma coacção externa, depois de modo autónomo, se impõe. Na verdade, a realidade não é mais do que uma realização.

domingo, 29 de outubro de 2017

Sonho

Oscar Dominguez - La Rêve, 1946-47

Podemos dizer: o sonho é um fado, um destino que nos transforma em sonhadores. É verdade, mas também se pode dizer: o sonho é um furúnculo. Coçamo-lo, coçamo-lo e ele, então, sangra e deixa escorrer a pestilência que encerra ou a pestilência que nos encerra.

sábado, 28 de outubro de 2017

Haikai do Viandante (341)

Ivonne Sánchez Barea - Vuelo (2007)

Um pássaro voa
na vendaval da floresta.
Silêncio que resta.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Poemas do Viandante (657)

William Congdon - Black city on gold river (1949)

657. uma cidade de pez corre

uma cidade de pez corre
na margem
do rio de ouro
leva o fruto da fuligem
nas asas
que cobrem
casas e palácios
onde dorme
o plácido peixe da paciência

(15/12/2016)

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Meditação breve (54) - Errância

Friedl Dicker - Rêve (1934-38)

O espírito não sonha, nem projecta, nem desenha utopias. É presença pura e acontecer. O sonho, o projecto, a utopia são sintomas de uma doença, sinais que abandonámos a casa do espírito e que entrámos no caminho da errância.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Indícios

Aaron Siskind - Gloucester, 1944

A ciência trabalha não com certezas mas com corroborações robustas dadas pela experiência. O espírito, porém, não tem apenas uma dimensão científica. Fora dela, ele trabalha por indícios. Um indício não nos diz nada sobre a verdade do que quer que seja. Indica um caminho, sugere uma palavra, aponta um silêncio.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Haikai urbano (23)

Josef Sudek - View of the First Courtyard through the Matthias Gate, Prague, not dated

Ao cair da noite
sombras deslizam na luz.
Olho e enlouqueço.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Meditação breve (53) - Diferenciação

Rodney Smith - Twins Leaning Outward, 1997

O interessante nos gémeos, fundamentalmente nos monozigóticos, e que talvez tenha, muitas vezes, atraído sobre eles o rancor público, não é a sua semelhança mas o ter-se perante o olhar esse ponto onde o igual se começa a diferenciar. A pequena e subtil diferença traz com ela uma ameaça, um princípio de dissolução que é sentido, ainda que inconscientemente, como particularmente inquietante.

domingo, 22 de outubro de 2017

Poemas do Viandante (656)

Franz Marc - Gazelas

656. gatos, galinhas e gazelas

gatos galinhas e gazelas
a arte da falcoaria
adestrada
por mão falcoeira
sob céu
de ramagens
verdes
com rimas breves
e versos de pé
                               quebrado

(14/12/2016)

sábado, 21 de outubro de 2017

Meditação breve (52) - Cordas

Toni Scnheiders - Cordas, sd

A vida é o processo pelo qual tecemos as cordas que nos atam e destroem a liberdade. A vida do espírito não é outra coisa senão o desatar dessas cordas, o destrançar das suas fibras, para que a liberdade - esse vento que sopra onde quer - se manifeste.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

O mistério da dor

Karola Pęcherskiego -  Warszawa,1948

A organização laboriosa e quase geométrica da vida. Depois, de um momento para o outro, sem que se perceba bem porquê, vem a destruição. O que se manifesta em toda a destruição, mais do que o mistério da iniquidade, é o mistério da dor. Escuta-se o Stabat Mater Dolorsa, de Pergolesi e é esse mistério que se ouve. A que lugar a dor, vinda pelo vento da destruição, nos deverá levar? Esse é o mistério.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Haikai do Viandante (340)

Charles le Roux - Borde del bosque; Cerezos en otoño (1855)

As cores de Outono
são sombras a descer nos campos.
As árvores despem-se.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Encarnação

Luis Fernández - Abstracción (1928)

O espírito geométrico é, na verdade, uma espécie de ganga da vida espiritual, o desperdício que fica de um grande esforço. A vida espiritual não é abstracção, redução do real a uma estrutura racional. Pelo contrário, toda a vida espiritual é encarnação, um fazer descer o espírito na carne, no corpo, para que este se torne espírito e se erga. Contrariamente ao que o senso comum pensa, o cristianismo, ao fazer descer sobre eles o espírito, salvou o corpo e a carne do anátema que o mundo antigo sobre eles tinha lançado.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Poemas do Viandante (655)

Franz Marc - Foxes (1913)

655. no rasto gasto da raposa

no rasto gasto da raposa
odores de névoa
e naftalina
a casa antiga batida
pelo chamamento
da zorra
a pele árdua
encravada no tacto
ou no tecto
se regouga uma voz
de mulher
                na voz da raposa
ou no rosnar da rosa

(14/12/2016)