sexta-feira, 21 de julho de 2017

Modelos

Deborah Turbeville - From the Valentino Collection, 1977

A moda é impensável sem os modelos e os desfiles que estes protagonizam. Tudo isto está intimamente ligado à transitoriedade. Dura uma estação e torna-se de imediato passado, pois qualquer coisa de novo está a irromper e a abrir a clareira da próxima colecção. Os fogos de artifício que rodeiam o fenómeno ocultam, contudo, a presença da eternidade no transitório de uma roupa. Mais do que manequins, suportes de vestuário ou calçado, os modelos são arquétipos espirituais, uma espécie de ideias platónicas, eternas e imutáveis, de cuja natureza os mortais pretendem participar. Vestidos ou sapatos não são objectos utilitários, mas o elemento metafísico que estabelece essa participação. 

quinta-feira, 20 de julho de 2017

O anjo da juventude

Chris Killip - Youth on Wall, Jarrow, Tyneside, 1976

Ao ver o murete, sentou-se e encostou o dorso à parede. Então flectiu as pernas e apoiou nelas as mãos, e nestas descansou o rosto. Vinha de longe, foi o que pensei. Tal era o ar exausto e a angústia que tentava ocultar. Por vezes, erguia a cabeça e perscrutava a rua, mas logo perdia o interesse e voltava-se para a dor que o animava. O que lhe aconteceu? É isso que quer saber? O que me disseram eu não o vi. Não o posso assegurar, apesar da fonte ser credível. Levantou-se e nas costas abriram-se duas asas. Voou para longe. Era um anjo, asseveraram-me sem se rirem, o anjo caído da juventude.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Haikai urbano (17)

Berenice Abbott - Nightview, New York, 1932

montanhas de luz
na invernia da noite
cidade sem sono

terça-feira, 18 de julho de 2017

Meditação breve (36) - Ruínas

Edward Weston - Meraux Plantation House, Louisiana, 1941

A tentação, ao olhar uma ruína, é ver ali a acção do tempo. Isso, porém, não passa de uma compensação e de um gesto de auto-indulgência da espécie humana. A ruína é a manifestação da incúria com que os homens lidam com aquilo que os envolve. Onde emerge uma ruína há um dedo acusatório apontado na nossa direcção.

domingo, 16 de julho de 2017

Poemas do Viandante (638)

Kuno Küster - Metamorfosis o, los cuatro administradores de la felicidad... (1993-94)

638. um violino desliza

um violino desliza
no breu do céu
sangra
na ferida
                supurada
glissandi
                de dor
                               e
arpeggios
                d’ira

(11/12/2016)

Meditação breve (35) - Sombras

Rodney Smith - Gary Descending Stairs, 1995

O sentimento de realidade e de solidez que ostentamos talvez seja apenas uma ilusão do nosso desejo. No lugar de vermos a sombra que somos, projectamo-nos como objectos reais dotados de existência. Até ao dia em que a ilusão se dissipa como a sombra se dissipa na ausência de luz.

sábado, 15 de julho de 2017

Uma bela mulher

Sergio Larraín - London (1959)

Pode dizer que ela era uma delas. Vinha ali algumas vezes por semana. Eu via-a da minha janela. Chegava e as aves envolviam-na, pousavam-lhe nos ombros, esvoaçavam sem inquietação em torno dela. Uma bela mulher. Não se pode dizer que falasse com os pássaros. Cantava e isso era tudo. A sua voz de contralto apaziguava-os. Quando se calava, as aves voavam para longe e ela ia-se embora. Ontem veio como das outras vezes, cantou a mesma ária de sempre, só que as aves em vez de a rodearem, mantiveram-se em bando bem acima dela. Então, ela começou a esbracejar e, pode crer, ergueu-se da terra e foi ao seu encontro. Desapareceram no horizonte.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Haikai do Viandante (327)

Hiroshi Sugitomo - Ligurian Sea, near Saviore, 1993

do céu o silêncio
cai sobre o mover das águas
névoas de verão

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Desdobrar-se

Carel Blazer - Double print, portrait, 1932 

O desejo de se desdobrar é uma revolta contra os limites da condição humana. O corpo impõe-nos a unidade, mas o espírito é múltiplo e incansável na processo de diferenciação. Jamais está apaziguado com a unidade que a materialidade do corpo lhe impõe. Por isso, inventa continuamente novas e novas formas de se tornar outro, de se tornar múltiplo, de ser muitos apesar de possuir apenas um só corpo. Se o corpo lhe impõe que se dobre, ele, o espírito, responde desdobrando-se.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Poemas do Viandante (637)

Kuno Küster - Deserto do silêncio

637. no deserto do silêncio

no deserto do silêncio
desejo a
sílica do olhar
e oiço
o sulco suave
das mãos
soltas
na névoa negra
das noites de novembro

(11/12/2016)