terça-feira, 18 de julho de 2017

Meditação breve (36) - Ruínas

Edward Weston - Meraux Plantation House, Louisiana, 1941

A tentação, ao olhar uma ruína, é ver ali a acção do tempo. Isso, porém, não passa de uma compensação e de um gesto de auto-indulgência da espécie humana. A ruína é a manifestação da incúria com que os homens lidam com aquilo que os envolve. Onde emerge uma ruína há um dedo acusatório apontado na nossa direcção.

domingo, 16 de julho de 2017

Poemas do Viandante (638)

Kuno Küster - Metamorfosis o, los cuatro administradores de la felicidad... (1993-94)

638. um violino desliza

um violino desliza
no breu do céu
sangra
na ferida
                supurada
glissandi
                de dor
                               e
arpeggios
                d’ira

(11/12/2016)

Meditação breve (35) - Sombras

Rodney Smith - Gary Descending Stairs, 1995

O sentimento de realidade e de solidez que ostentamos talvez seja apenas uma ilusão do nosso desejo. No lugar de vermos a sombra que somos, projectamo-nos como objectos reais dotados de existência. Até ao dia em que a ilusão se dissipa como a sombra se dissipa na ausência de luz.

sábado, 15 de julho de 2017

Uma bela mulher

Sergio Larraín - London (1959)

Pode dizer que ela era uma delas. Vinha ali algumas vezes por semana. Eu via-a da minha janela. Chegava e as aves envolviam-na, pousavam-lhe nos ombros, esvoaçavam sem inquietação em torno dela. Uma bela mulher. Não se pode dizer que falasse com os pássaros. Cantava e isso era tudo. A sua voz de contralto apaziguava-os. Quando se calava, as aves voavam para longe e ela ia-se embora. Ontem veio como das outras vezes, cantou a mesma ária de sempre, só que as aves em vez de a rodearem, mantiveram-se em bando bem acima dela. Então, ela começou a esbracejar e, pode crer, ergueu-se da terra e foi ao seu encontro. Desapareceram no horizonte.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Haikai do Viandante (327)

Hiroshi Sugitomo - Ligurian Sea, near Saviore, 1993

do céu o silêncio
cai sobre o mover das águas
névoas de verão

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Desdobrar-se

Carel Blazer - Double print, portrait, 1932 

O desejo de se desdobrar é uma revolta contra os limites da condição humana. O corpo impõe-nos a unidade, mas o espírito é múltiplo e incansável na processo de diferenciação. Jamais está apaziguado com a unidade que a materialidade do corpo lhe impõe. Por isso, inventa continuamente novas e novas formas de se tornar outro, de se tornar múltiplo, de ser muitos apesar de possuir apenas um só corpo. Se o corpo lhe impõe que se dobre, ele, o espírito, responde desdobrando-se.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Poemas do Viandante (637)

Kuno Küster - Deserto do silêncio

637. no deserto do silêncio

no deserto do silêncio
desejo a
sílica do olhar
e oiço
o sulco suave
das mãos
soltas
na névoa negra
das noites de novembro

(11/12/2016)

terça-feira, 11 de julho de 2017

O acrobata

Marino Marini - Acrobats (1960)

Pensamos as acrobacias como exercícios de equilíbrio fundados na destreza, agilidade, força e risco. Vale, porém, a pena fazer a arqueologia da palavra. Descobrimos a sua origem no vocábulo grego akróbatos, aquele que anda em bicos dos pés. Há uma certa continuidade de ideia. Andar em bicos dos pés implica equilíbrio. A destreza física do equilibrar-se acaba, todavia, por nos esconder o desejo que se esconde nessa estranha forma de andar. Tem duas características. Por um lado, é uma diminuição da base de apoio do homem, diminuindo o contacto do corpo com a terra. Por outro, é um elevar-se em direcção ao céu. Na essência da acrobacia há, deste modo, um desejo de elevação e de superação da condição terrestre do homem.

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Eclipse

Mario Sironi - L'eclisse (1942)

Oiço-a gritar, chamar por mim, dizer coisas que nunca julguei ouvir, mas não a vejo. De um momento para outro deixei de a ver. Se eu a conhecia? Não sei. O facto de ter casado com ela há 20 anos não prova nada. Nós julgamos que conhecemos alguém, mas isso não passa de uma presunção. O surpreendente é que quando a via, quando o seu corpo estava perante os meus olhos, nunca a ouvi gritar ou dizer o que quer que fosse de desagradável. Até que um dia alguma coisa se interpôs entre nós. Tem toda a razão. Um eclipse, um verdadeiro eclipse. Deixei de a ver. Quanto menos visível, mais audível se torna a sua voz. Enlouqueço.

domingo, 9 de julho de 2017

Haikai urbano (16)

Fred Stein - Cobblestones, Paris (1936)

a calçada cresce
sobre o mistério da terra
rua sem raízes