terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (614)

Marcel Duchamp - Disc em movimento - Rotolief

614. um disco em delírio

um disco em delírio
desenha
uma rota de colisão
e rodopia
rodopia
tomado pela cólera
de um coral
preso ao fundo
negro
negro da escuridão

(08/12/2016)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A sombra exausta

Bill Jacklin - Argus I (with Shadow) (1985)

Já não posso estar aqui. Durante muitos anos, pode crer, este foi o meu lugar. Cansada, sentava-me nesta cadeira. Sempre no mesmo lugar junto à parede. Via a luz que entrava na casa. Gostava, em particular, dos crepúsculos, da sensação do mundo a desvanecer-se na noite. Agora, cada vez que aqui me sento, é um tormento. Sinto umas mãos nas minhas costas. Empurram-me como se tivesse perdido o direito a sentar-me na minha cadeira. Se descobri quem me empurrava? Sim. É a minha própria sombra. Que desapareça, grita. De tanto conviver comigo, está exausta e não me suporta. Chegou o tempo dela se sentar na cadeira e descansar, afiança, enquanto me empurra.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Da casa do espírito

Lajos Kassák - IV. Aristocratas e Castelos (1920)

Os castelos perderam sentido e com eles também o perderam as aristocracias. Um certo espírito está sempre ligado a um certo tipo de habitação. Quando a casa perde o sentido morre também o espírito que a habitava e lhe dava vida. Mas o espírito não é imortal? Não está ele para além do corpo e da morte? Não e sim. Sempre que o espírito encontra albergue numa certa moradia limita-se e torna-se mortal. O tempo e a história dar-lhe-ão o fim que já está inscrito na sua limitação. O espírito imortal , esse não tem onde habitar, não procura morada nem lugar de repouso. Como o vento, ele corre pela terra. Ora está no deserto, ora sopra do cume das montanhas. Vagabundo, sem eira nem beira, miserável e sem casa onde habitar, esse é o espírito imortal.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

O desejo de voar

Tal-Coat - Vuelo (1973)

O desejo de voar que habita os homens não se deve a uma propensão para imitar as aves mas a uma ânsia de libertação. Libertar-se das limitações do corpo e do império da gravidade. Voar é então um devaneio da razão sobre as condições da nossa humanidade. No entanto, este sonho de se libertar da prisão imposta pela densidade da carne é apenas o prelúdio de uma compreensão do homem como espírito. No voo a espécie humana simboliza a graça do espírito, a graça de um mover-se que a eleva acima da condição terrestre e a abre para o incomensurabilidade da condição celestial.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (613)

Felo Monzón - Composición cinética (1965)

613. o lirismo do labirinto

o lirismo do labirinto
leveda
em traços negros
e traz aos olhos
névoas
neblinas matinais
a combustão
do desejo
no labor lavrado da lava

(08/12/2016)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Meditação breve (15) - Édipo e a esfinge

Valerio Adami - Édipo e a esfinge (1980)

Não foi Édipo que matou a esfinge. Foi a esfinge que se deixou matar por Édipo, para assim o perder sem remissão. 

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Haikai do Viandante (316)

Fernando Sáez - Crepúsculo (1991)

frias sombras descem
sobre o palácio de inverno
uma ave cantou

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O concerto

Antonio Bueno - Concerto per Flauto e Violoncello (1972)

Era domingo, eu estava só. Ao cair do crepúsculo comecei a ouvir uma música. Um dueto para flauta e violoncelo. O som foi-se aproximando. Fiquei fascinado. Conforme anoitecia, a música tornava-se mais viva. A certa altura, mesmo no centro desta sala, vejo duas formas, primeiro difusas, depois cada vez mais nítidas. Eram os instrumentos. Pareciam tocar sozinhos. Senti medo, confesso. Quando a noite se cerrou, notei que duas mulheres, jovens e belas, os tocavam. E como tocavam… Não sei quanto tempo durou o concerto. Adormeci e quando acordei, na manhã de segunda-feira, elas tinham desaparecido. Os instrumentos são aqueles que vê. Foram a sua herança.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (612)

Yves Klein - Empreinte du fond d’une baignoire vide dont l'eau avait été colorée de Vermillon (1960)

612. lento e leve levita

lento e leve levita
o vento
poeiras de sódio
rastos de sílica
traços de lítio
seguem
na folha caída
do sonho sonhado
na cegueira de deus

(07/12/2016)

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Meditação breve (14) - Crença e dúvida

Francisco Arjona - ¡Adelante con la duda! (1985)

Não é a dúvida que mata a crença. É a crença que não se põe em dúvida que acaba por morrer anémica.