terça-feira, 17 de janeiro de 2017

História de um olhar

Ferdinand Hodler - Alma decepcionada (1891)

Vem todas as manhãs, desde que não chova, e parte pouco depois do meio-dia. Ainda era jovem quando começou a vir. Senta-se e olha. Não, não. Se procuro na memória descubro que o espectáculo, ao longo de tantos anos, está longe de ser monótono. Nos primeiros tempos, o seu olhar era garboso e inquieto, havia nele ânsia de domínio de tudo o que o rodeava. Mais tarde, parecia ter uma certeza funda nesse senhoria. A partir de certa altura, deixou de olhar em volta. Olhava para si. Agora olha para baixo, para a terra. Chega e parte e nunca dela desprende o olhar.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Meditação breve - 2. Ansiedade

Edvard Munch - Ansiedade (1894)

O grau de ansiedade mede a distância que vai de nós àquilo que nos envolve e do qual nos separámos. A separação da envolvência transforma esta não apenas numa coisa desconhecida mas, e fundamentalmente, numa ameaça e num perigo. A ansiedade é o sintoma de um esquecimento. 

domingo, 15 de janeiro de 2017

Haikai do Viandante (313)

Manuel Narváez Patiño - Invierno (1993)

desejo de luz
no coração do inverno
branca a neve cai

sábado, 14 de janeiro de 2017

Meditação breve - 1. O Inverno

Ramón Casas Carbó - Invierno (1893)

Há no Inverno uma ilusão de suspensão do tempo, como se este, desgastado pelo frenético devir das estações mais quentes, precisasse de se recolher na sombra e na solidão, onde o fogo, uma reminiscência dos dias de Verão, o mantém na vida. Ali recupera a força com que vai brotar no exterior e entregar-se de novo à veloz vertigem da corrida que só para nós, pobres mortais, tem fim.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Poemas do Viandante (604)

Arden Quin - Cercle Rouge (1944)

604. um círculo vermelho

um círculo vermelho
pulsa
na relva rude
e verde da solidão
grita preso
numa geometria
feita de triângulos
de adobe
e quadrados
de cinziareia de sol

(06/12/2016)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Do burlesco

Thomas Hart Benton - Burlesque (1922)

O burlesco e o grotesco que esteticamente lhe está ligado são visões críticas da distorção da própria vida espiritual. Muito facilmente os homens tomam a vida do espírito - nos múltiplos domínios que a constituem - como uma afirmação de si e da sua vaidade. Esta incongruência entre aquilo que anseia a libertação das restritas fronteiras do pequeno ego e o seu aprisionamento por este mesmo ego torna-se risível. O burlesco tem então o poder, através do exagero caricatural, de tornar patente, aos olhos de todos, o quão grotescos podem ser os homens.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

A própria sombra

John Yardley - A book on the terrace

Temo-a. Sento-me no terraço e, mal abro o livro, dou com a minha sombra presa à parede. Sinto uma vertigem, mas deixo os olhos correr sobre as palavras, cavalgar as linhas, para que os dedos possam mudar as páginas. Nunca olho, sinto, porém, que a sombra está viva e se vai transformando conforme a leitura avança, Chego a sentir-lhe o cheiro. É nesses momentos que ela me atrai. Desejo saber como é, mas temo que ela se desprenda da parede e me ataque. Então, naquele instante em que o medo se está a transformar em pânico, fecho o livro e a sombra desaparece. 

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Sobre a atenção

Avigdor Arikha - Alba in the Studio (1988)

Por isso, vigiai; porque não sabeis o dia nem a hora (Mat. 25:13).

A condição do homem é a da ignorância. Daquilo que é essencial, ele não sabe nem o dia nem a hora. Não sabe o tempo nem o modo. É essa ignorância, o reconhecimento dessa ignorância, que conduz ao imperativo: vigiai. Vigiar significa estar atento, mobilizar a atenção. O que o versículo de Mateus torna manifesto é que a principal faculdade do homem não é a inteligência, nem a vontade, tão pouco a memória ou a imaginação. O principal é a atenção. O que significa então o estar atento, o vigiai? Significa estar presente perante aquilo que, a cada instante, se manifesta. O fundamento da vida espiritual e, de toda a vida, é a pura atenção. Atenção a si e atenção ao outro.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Poemas do Viandante (603)

Ramón Rivas - Abstracto (1955)

603. constelações lunares

constelações lunares
germinam nos campos
elevam a luz
ao fruto dos céus
e aves e nuvens
e anjos de asas
gramaticais
incandescem
no dedo solto
e livre no livre
e liberto
aluamento da terra

(06/12/2016)

domingo, 8 de janeiro de 2017

Prazer pleno

Guillermo Muñoz Vera - La cosecha (1995-96)

É no capítulo três do livro de Eclesiastes que surge a grande meditação sobre os ritmos de vida do homem. O central nesse capítulo, porém, não é o ensinamento de uma rítmica existencial mas a afirmação de que a vida merecer ser vivida plenamente: assim eu concluí que nada é melhor para o homem do que alegrar-se e procurar o bem-estar durante a sua vida; e que comer, beber e gozar do fruto do seu trabalho é um dom de Deus (Eclesiastes, 3:12,13). A rítmica existencial, que começa o capítulo, só faz sentido no âmbito da busca de uma vida feliz e realizada, realização onde se inscreve uma interpretação hedonista da existência. O ritmo do plantar e do colher não é então o do opróbrio e da desgraça mas do prazer pleno de estar vivo. E esse prazer e o reconhecimento e a gratidão pelo dom da vida.