quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A mulher sentada

Henri Rousseau - River Bank (1890)

Sempre a vi ali. Sentada, contempla o rio. Por vezes, levanta a cabeça e observa o arvoredo ou o casario, como se esperasse algum sinal, mas logo o olhar volta para o fluxo das águas. Nunca ninguém lhe dirige a palavra. Quem por ali passa ignora-a ou, comecei a desconfiar, não a vê. O banco é só dela e, por instinto, suponho, todos respeitam a propriedade. Nunca sai dali? É isso que quer saber? Se se ouve o dobre a finados, ela levanta-se, entra no barco, pega nos remos e desaparece na curva do rio. Quando volta, senta-se e volta a fixar os olhos nas águas que passam. Em silêncio.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Das trevas

Albert Gleizes - O centro negro (1925)

Há duas espécies de trevas na vida do espírito. A primeira espécie é objectiva. Resulta da ausência absoluta de luz. São as trevas exteriores. A segunda é subjectiva. A luz é de tal maneira intensa que o espírito fica cego. São as trevas interiores. Às primeiras resta sempre a expectativa de que um foco de luz as ilumine. Às segundas há que aceitá-las e aprender a navegar na escuridão.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A conversação

André Hambourg - La conversation (1929)

Na vida espiritual, tomada numa ampla acepção, a conversação, como outros aspectos da vida dos homens, apresenta um ambiguidade essencial. Tomada como bavardage, tal como os franceses a entendem, ela é um factor de inibição do caminho, uma distracção, no melhor dos casos, e uma alienação, nos piores. No entanto, é fundamental como o encontro entre espíritos, encontro onde se inter-animam e se fazem progredir no caminho. É também estrutural enquanto diálogo consigo mesmo, onde a conversação estabelece a ponte entre as partes cindidas do self e lhe permite aperceber de uma unidade anterior a toda a cisão que o espírito sofre no mundo.

domingo, 25 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (599)

Bill Jacklin - Duet (1971)

599. a sonora sombra

a sonora sombra
desce
pelas escadas
da noite
e pura paira
na fronteira
irisada
de um fruto
ferido por terra

(04/12/2016)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (310)

Caspar David Friedrich - Mist (1807)

névoa na manhã
tudo se torna mistério
o natal chegou

Tempestade

László Péri - Der Strum (1923)

No caminho do viandante, a tempestade é um elemento central. Na tempestade dissolve-se a ordem estabelecida. Os hábitos, cristalizações de onde o espírito se ausentou, são desfeitos perante o inusitado do tempestuoso. Mais leve, o espírito reabre-se para o inédito de cada momento, salvo pelo troar da tempestade.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

A adoração do Menino

Maestro del Retablo di Bolea - Adoración del Niño

Desde há bastante tempo que é moda olhar para o cristianismo a partir das práticas deletérias dos cristãos. Esse olhar enviesado oculta o papel profundo que o cristianismo tem no melhor que há na cultura e civilização ocidentais. Veja-se o exemplo retirado do quadro atribuído ao mestre do retábulo de Bolea. Sem o arquétipo presente na adoração do Menino, não haveria espaço cultural para uma das mais importantes conquistas civilizacionais da humanidade consignada nos direitos das crianças. Mesmo que muitos cristãos, nomeadamente padres católicos, tenham violado de forma infame esses direitos, a sua condenação começa no acto em que uma certa civilização ou cultura coloca no cerne das suas crenças a divindade do Menino Jesus, o respeito infinito pela criança, a qual, para além de humana, é divina. O que se diz dos direitos das crianças, poder-se-ia estender a todas as outras esferas dos direitos civilizacionais, nas quais a dignidade do ser humano, essa reivindicação iluminista, repousa, em última análise, nos textos neo-testamentários. Há coisas que não devemos esquecer.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (598)

Felo Monzón - Construcción (1975)

598. desenho labirintos

desenho labirintos
                ao correr
das mãos
             e toco
     com a noite
    as paredes
de argila
onde     uma música
                de segredos
me há-de prender
me há-de perder

(04/12/2016)

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

De olhos fechados

Odilon Redon - With Closed Eyes (1890)

Fecho os olhos e é tudo o que me resta. A escuridão é benfazeja. Houve um tempo em que queria ter os olhos bem abertos. Era perspicaz e via tudo, pensava. Rapidamente, a desilusão chegava. Afinal não tinha visto tanto quanto julgara. Os olhos, por abertos que estejam, são maus julgadores. As aparências são mesmo aparências. A uma desilusão somou-se outra e outra. Parecia não ter fim. E em cada uma descobria que os olhos, os meus olhos, me tinham traído. Resta-me fechá-los e entregar-me à cegueira. No escuro não há lugar para a ilusão. 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

No parapeito

George Seurat - Man at a Parapet (1881)

Se fosse um pássaro... Se fosse um pássaro poderia saltitar no parapeito sem medo de cair. Não, não sou um pássaro. Sinto apenas a vertigem e um desejo de voar. Tenho medo de olhar para baixo. Tenho medo do apelo do voo. Tenho medo. E não sei por que razão este parapeito me chama e por que motivo me debruço nele. Olho e vejo o que se passa lá em baixo. É tudo tão pequeno. Os homens, os carros. Será ali a ilha de Lilliput? Meu Deus, subo para o parapeito. Dei um passo e estou no vazio, mas as costas rasgam-se e umas enormes asas fazem-me deslizar no ar. Voo. Alguém grita:"É Gabriel, o Arcanjo". Calo-me, o que lhes direi?