domingo, 20 de novembro de 2016

Domingo de chuva

Émile Jourdan - Pluie à Pont-Aven (1900)

Os domingos são sempre dias onde se manifesta uma qualquer anormalidade. Por vezes, é a melancolia de uma tarde de sol que anuncia a desadequação à norma. Um domingo chuvoso traz consigo o mesmo poder simbólico. Não apenas retém os seres humanos nas suas casas, como é sentido como uma estranha injunção para que se recolham em si mesmos e, por um momento, esqueçam, nesse recolhimento, a inclinação para se dispersarem, movidos pelo fascínio que o mundo sobre eles exerce. Recolher-se em si, ainda que por instantes, é já um confronto consigo mesmo, um questionar sobre quem se é e sobre a vida que se tem. São perigosos os domingos de chuva.

sábado, 19 de novembro de 2016

Da ambiguidade da memória

Gino Severini - Memories of a Journey (1911)

A memória traz consigo, devido à sua própria natureza, uma ambiguidade que não deixa de assombrar a vida espiritual dos homens. Toda a vida espiritual tem uma dimensão de rememoração, de anamnese, onde o exercício da reminiscência liga o sujeito ao fio condutor de uma tradição. O exercício memorial, porém, pode constituir um fascínio de tal modo poderoso que desliga o homem da sua própria viagem, e esta é sempre um estar no presente, uma atenção plena e total ao puro acontecer no aqui e no agora.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (590)

Jesús María Cormán - 5.8 Richter scale (2001)

590. poeiras sobre poeiras

poeiras sobre poeiras
erguem-se
ao som
de um violino
e tudo ondula
na onda sonora
de uma sequência
ordenada
ao ritmo
da escala de richter

(22/10/2016)

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Acerca da definição

Albert Porta - Book of Definitions (1978)

Uma das inclinações mais notáveis do espírito humano é a de se entregar ao trabalho da definição. Definir significa antes de mais limitar. Assinalado um território assim limitado, passa-se ao processo da sua caracterização para lhe dar um sentido. Contudo, nesta tarefa que está na base da filosofia e da ciência há um tal estreitamento do horizonte que o mesmo espírito sente toda a definição como um produto estranho e, em última análise, ameaçador. É por isso que a vida espiritual é uma revolta contínua contra a definição, uma guerra sem parar do espírito consigo mesmo, contra aquilo que nele é tendência mórbida e inelutável para a limitação.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (305)

Benvenuto Benvenuti - Cipresse e colombe (194)

pombas e ciprestes
murmuram ao cair noite
vento e solidão

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Pastores sem ovelhas

Pére Pruna - O Bom Pastor (1950-55)

No epíteto de Bom Pastor não emerge apenas a bondade como traço de carácter ou como qualidade técnica na condução do rebanho. Surge também a ideia de rebanho. O problema que se coloca às religiões do Livro - nomeadamente, ao Cristianismo - é que vivemos numa época em que os homens deixaram de se compreender como ovelhas de um rebanho. Este é o drama das igrejas cristãs e o terror dos clérigos muçulmanos. Que fazer com homens que dispensam pastores? Estarão eles condenados a uma vida destituída de relação com o espiritual? Nada aponta nesse sentido. Pelo contrário. O que os homens de hoje em dia dispensam não é a vida do espírito, mas o serem transformados em eternas crianças - em ovelhas de um rebanho - entregues à guarda de pastores que, muitas vezes, estão longe de serem bons. Pensar por si mesmo, essa injunção do Iluminismo, não é uma revolta contra o espírito, mas um novo fundamento de uma vida espiritual mais plena, mais profunda e mais comprometida.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (589)

Jesús María Cormán - 2.3 Richter scale (2001)

589. treme a terra

                treme a terra
na leveza
escura do espaço
                oscila no ócio
da eternidade
                se grãos de areia
deslizam
pelos dedos
                vazios
e
                vacilantes de deus

(22/10/2016)

domingo, 13 de novembro de 2016

Tagarelice

Federico Zandomeneghi - Bavardage

Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento da vida do espírito, seja em que dimensão for que esta se manifesta, é a tagarelice. Esta é muito mais do que um assunto e um vício de grupos de pessoas que assim se ocupam na vida privada. A tagarelice é a essência da esfera pública. Mesmo os assuntos sérios e decisivos da vida das comunidades transformam-se, na esfera pública, num exercício onde os tagarelas se exibem e dominam a paisagem social. O pior da tagarelice, porém, não se encontra aí. O pior é a tagarelice íntima que a consciência de cada um empreende consigo mesma. Esta tagarelice íntima, mãe de todas as outras, é o sinal de uma doença do espírito, que se cinde para empreender consigo mesmo uma conversação fútil e sem fim, um exercício de distracção e de alienação, de perda na mais pura errância. 

sábado, 12 de novembro de 2016

O destino

Juan Antonio Mañas - El destino (2000)

Admira-se de me ver sempre aqui sentado? Tem razão para isso. Na verdade não me conhece. Fui educado na mais estrita crença no fatalismo. Os meus pais acreditavam numa ordem natural do mundo, uma ordem para sempre prescrita e imutável. Quando percebi o sentido do que me era ensinado, passei a sentar-me aqui dia após dia. O que o destino me destinasse viria ter comigo. Ah... está enganado! O facto de nada ter vindo ter comigo não desmente a minha crença. Pelo contrário, compreendi que estar sentado à espera era o fado que me fora destinado.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Da convergência

Jackson Pollock - Convergence (1952)

A vida, devido à multiplicidade de experiências que proporciona, é o lugar onde a consciência, ao romper com a sua unidade ingénua, é arrastada de divergência em divergência, o que a poderá conduzir à cisão absoluta, à mais escura das patologias. A vida espiritual é o exercício de um retorno a si, de uma convergência consigo mesmo para além da unidade ingénua e da dissipação na divergência, é o lugar da salvação, entendida esta como a terapia dessa cisão que torna o homem estranho a si mesmo.