sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Da convergência

Jackson Pollock - Convergence (1952)

A vida, devido à multiplicidade de experiências que proporciona, é o lugar onde a consciência, ao romper com a sua unidade ingénua, é arrastada de divergência em divergência, o que a poderá conduzir à cisão absoluta, à mais escura das patologias. A vida espiritual é o exercício de um retorno a si, de uma convergência consigo mesmo para além da unidade ingénua e da dissipação na divergência, é o lugar da salvação, entendida esta como a terapia dessa cisão que torna o homem estranho a si mesmo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (588)

Gerardo Rueda - Ballesta (1961)

588. o arquipélago do ardor

o arquipélago do ardor
emerge no mar
suspenso
na luz arenosa
da areia branca
e pérola
de um oceano côncavo
como um coração
a sangrar
de ilha em ilha

(21/10/2016)

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (304)

Charles Guilloux - Paisagem fluvial (1893)

nas nuvens do céu
vêem-se as águas do rio
espelho e imagem

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Uma chávena de chá

Columbano Bordalo Pinheiro - Uma chávena de chá (1898)

Os dias eram preenchidos e alegres. Falávamos sobre isto e aquilo, fazíamos planos e cumpríamos os planos. A vida fora generosa connosco e permitia-nos ócios prolongados. Ele pouco tempo perdia com a administração dos bens. Todas as tarde tomávamos chá e deixávamo-nos enredar pelo desejo e por novos planos e novas aventuras. Foram anos de felicidade absoluta, como se fosse ainda possível um paraíso sobre a Terra. Os deuses, porém, são ciosos da sua exclusividade. Raramente estão dispostos a oferecer-nos um paraíso eterno. De tudo, resta este hábito, uma chávena de chá no silêncio da tarde.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Prisioneiros

Lorenzo Viani - I carcerati (1912-15)

Pelo menos desde Platão e a famosa Alegoria da Caverna que se elaborou a estranha concepção de que somos todos, de alguma forma, prisioneiros. Esta ideia, de uma fecundidade ainda não devidamente avaliada, conduziu, no Ocidente, a uma série de processos de emancipação. Não será, porém, a ideia de que o mundo e o corpo são uma prisão para o espírito uma derradeira prisão de que o homem precisa de se libertar? Não será essa cisão entre o espírito e o corpo, o espírito e o mundo, a mais perniciosa das ilusões. A crença de que o espírito está prisioneiro é, na verdade, a própria prisão a que o homem voluntariamente se sujeita.

domingo, 6 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (587)

Vicente Rojo - Señales (1967)

587. súbitos sinais

súbitos sinais
soam
no silêncio sonoro
do sonho
no signo suave
da saudade
o símbolo suado
e sonâmbulo
da sombria solidão

(21/10/2016)

sábado, 5 de novembro de 2016

Desejo de Inverno

Edvard Munch - Winter Night (1900)

Há um momento no Outono em que o espírito é tomado por um desejo intenso de Inverno. Não pelo rigor do clima em si mesmo, mas porque esse tempo acorda no coração dos homens um desejo de recolhimento e silêncio. O Verão é, para muitos, uma bravata inútil. O tempo invernoso tem esse poder simbólico de abrir o homem, nem que seja naqueles momentos em que medita perante o fogo de uma lareira, para tudo o que é essencial.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

De foz em foz

Lyonel Feininger - Ao longo do rio (1952)

A vida espiritual do homem ocidental foi demasiado marcada pela imagem heraclitiana da impossibilidade de mergulhar duas vezes nas mesmas água de um rio. A cintilação da dialéctica de Heraclito, consubstanciada nessa ideia, ocultou aquilo que será mais decisivo. E o mais decisivo não é tentar mergulhar nas mesmas águas, mas deixar-se ir ao longo do rio, aprender a flutuar e a fundir-se no fluxo que leva da nascente à foz, e desta, tornada nova nascente, até à próxima foz.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A espera

Edward Hopper - Mañan en Cape Code (1950)

Chegava à janela, abria-a e ficava longas horas a olhar o horizonte. A princípio pensei que esperava alguém ou alguma coisa. A cena, porém, repetiu-se sem cessar. Não era, por certo, pessoa ou coisa que ela aguardava. Veio o Verão, depois o Outono e os anos foram passando. Havia nela uma fidelidade inabalável ao ritual, uma fé inextinguível. Há dias, a manhã despontou sob uma grande tempestade. Ela abriu a janela, debruçou-se sobre o parapeito. Um raio atingiu-a. Por momentos, reverberou e depois caiu. Havia no seu rosto sem vida um rasto de felicidade. Tinha chegado o que há muito esperava.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (586)

Liubov Popova - Komposition (1918)

586. sangue de vidro

sangue de vidro
escorre
no vitral verde
da melancolia
e abre-se
na noite de azeviche
para gotejar
no coágulo azul
a arder no azeite
puro
do céu de anil

(21/10/2016)