segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Da profundeza

Georges Rouault - De profundis (1917-27)

O ser humano é um habitante do mundo do meio. Não pertence nem ao território rarefeito do alto, nem às terras inóspitas das profundezas. Essa vida no mundo mediano, porém, limita-lhe o olhar e o desejo. Acontece, muitas vezes, que, arrastado para essas profundezas, fazendo a experiência da queda e do adverso dos baixios, ele ergue os olhos para cima e o seu desejo leva-o para além daquilo que cabe ao homem.

domingo, 25 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (298)

Paul Cézanne - As margens do Marne (1888)

das margens do rio
avistam-se sombras na água
flutuam e passam

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (576)

Jacqueline Lamba - Ciel Noir (1986)

576. um céu de seda

um céu de seda
negra
desce na rua
coberta de neve
e a noite
cai
na neve negra
de uma seda
celestial

(10/08/2016)

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

O primeiro passo

Frantisek Kupka - O primeiro passo (1909)

A glória do primeiro passo, na opinião comum, resulta da combinação do início de um caminho com a definição de uma direcção. Não se pensa, porém, no negativo desta glória. Todo o primeiro passo é já afastamento, abandono, o começo de um esquecimento. Toda a glória funda-se assim na dor, numa experiência traumática, naquilo que as tradições monoteístas chamam queda.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Na casa de Misia

Pierre Bonnard - A casa de Misia (1906)

Foi na casa de Misia que a conheci. Quando chegava, ela já estava. Sentada, na varanda, lia em silêncio. Era frugal nas palavras. Se os encontros da tarde se prolongavam pela noite, ela excluía-se de qualquer animação. Olhava para todos nós, os seus olhos eram um incêndio contido. Com o tempo compreendi que ninguém lhe dirigia a palavra, mas não havia qualquer hostilidade. Apaixonei-me, confesso. Uma tarde, já ao crepúsculo, não me contive. Dirige-me a ela e perguntei-lhe o nome. De imediato, se desvaneceu. Senti uma mão no ombro. Era a dona da casa. Sorriu e disse-me: está na hora, Orfeu, de nos constares uma história.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

A janela fechada

Pablo Picasso - La ventana cerrada (1899)

Talvez seja por medo do exterior que o homem se fecha em si mesmo. A janela fechada simboliza essa oclusão. O fechamento da janela não resulta, contudo, de uma decisão. Ele é, mais que tudo, o resultado de um processo que começa talvez antes do nascimento. Toda a educação visa solidificar o fechamento de si e reforçar as portadas da janela. Por vezes, alguém, sem saber claramente a razão, arromba a janela e sai de si. É aí que começa a arte, a filosofia ou a experiência mística. Todas elas são o fruto de um acto de violência, de uma insubordinação contra a ordem que encerra o homem na clausura de si mesmo.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (575)

Paul Ackerman - A l'aube (1962)

575. sonho o ardor

sonho o ardor
da aurora
na praça
fria e fétida
da noite
componho
com traço
de tristeza
a angústia
do sonho
sonâmbulo
ao despertar

(10/08/2016)

domingo, 18 de setembro de 2016

Sobre a camuflagem

Pancho Gutiérrez Cossío - Camouflage (1921)

A camuflagem, em aparência, é um exercício que visa evitar o reconhecimento pelo outro. Fundamentalmente, quando este outro é um inimigo ou um predador. A camuflagem surge, deste modo, com um exercício vital. A sobrevivência depende da arte do disfarce. Rapidamente, a espécie humana transferiu a dissimulação da esfera da luta pela sobrevivência para a da vida social, como se sentisse também nesta uma ameaça. Sem dar por isso, tomou aquilo que é um mero expediente de sobrevivência como sendo a sua própria natureza. Tomamos a máscara, ou o efeito de camuflagem, como a nossa efectiva realidade. No momento em que o homem sente um suspeita sobre a distância que vai entre a camuflagem e a realidade de si mesmo, nesse momento começa a aventura espiritual. Até ali, o que via era apenas e só o animal acossado que também é.

sábado, 17 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (297)

Albert Bierstadt - Autumn Woods (1886)

outono nos bosques
vem vestido de verão
rios de solidão

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O positivo e o negativo

Gerardo Rueda - Positivo - Negativo (1965)

A distinção entre o positivo e o negativo será uma das formas de classificação mais básicas usadas pela espécie humana. O problema é que esta classificação, como todas as outras semelhantes, nada nos diz sobre a coisa classificada, mas sobre aquele que atribui a classificação, que projecta, ao classificar, os seus desejos e os seus temores. Estamos ainda no domínio do pensamento mágico. A vida espiritual começa onde cessa a necessidade de classificar, onde acaba a magia. O positivo e o negativo são grilhões que prendem o espírito à ilusão, ilusão que ele próprio projecta sobre o mundo.