domingo, 5 de julho de 2015

Haikai do Viandante (239)

Edward Hopper - Adobe Houses (1925)

casas de adobe
erguem-se lentas do chão:
segredo na terra

sábado, 4 de julho de 2015

Signo sinal 7. No ermo dos montes

Joan Miró - Ermida de Sant Joan d'Horta (1917)

Há lugares que funcionam como um sinal, um indicador. Uma ermida perdida no ermo dos montes não é apenas o sinal de uma antiga devoção. É um lugar onde o viandante recobra as forças para a viagem, é o sinal de que não entrou na errância, o signo que confirma que ele segue no caminho para o qual não há confirmação.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Poemas do Viandante (513)

Luciano Freire - Trecho da Trafaria

513. o casario em ruínas

o casario em ruínas
desce pelo monte

a cor da melancolia
morre nas paredes

no velho vidro quebrado
pela luz do horizonte

no frio aceno da mão
com que te despedes

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Matéria de dogma

Pablo Picasso - Humo en Vallauris (1951)

O fumo que cresce e tapa o horizonte. É esta a condição humana. A limpidez original vai, durante a vida, sendo toldada pelo fumo trazido pelos dias, até que o horizonte fique completamente tapado. Num primeiro momento, o homem ainda possui uma reminiscência desse horizonte. Esta, porém, vai sendo paulatinamente apagada da memória até que nada reste. Nessa hora, crer que para lá do fumo existe um horizonte puro passa a ser matéria de dogma. O fuma tornou-se a única realidade digna de crença.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Um pressentimento

Paul Klee - "Quelle peut être la raison ..." (1911)

Há um tempo em que os seres humanos desconhecem a razão das coisas e daquilo que sucede e lhes sucede. Depois descobrem um dos seus passatempos preferidos: encontrar a razão das coisas. Dar a razão de... é um jogo poderoso e fascinante. Tão fascinante e poderoso que os homens perdem a abertura para o que não tem razão, para aquilo que não se deixa capturar pela veemência do logos. Por vezes, têm um pressentimento e, então, tremem: e se o decisivo estiver para além da veemência da razão?

segunda-feira, 29 de junho de 2015

O construtor de pontes

Alejandro Xul Solar - Anjos (1915)

De súbito, acordou e viu a sua vida diante de si. Não era daquelas visões que, diz-se, o moribundo tem antes do desenlace fatal. Era uma visão prosaica do seu trabalho. Arquitecto, passara a vida a construir pontes. Viu, naquele instante, cada rio que venceu, cada margem que ligou, cada ponte que ajudou a erguer para que a vida dos homens fluísse e as águas fossem vencidas. Sentiu um vazio. A sua vida não fora mais do que ligar o semelhante ao semelhante, um lado ao outro. Melancólico, tornou a adormecer e sobre ele veio novo sonho. Não sabia desenhar e nas suas costas cresceram umas enormes asas. A angústia aumentou, aumentou, até que viu, num lado da terra, a multidão dos homens e no céu uma presença viva sem forma, sem figura, sem matéria. E enquanto, atónito, olhava para um lado e para o outro, sentiu a verdade do seu ser. Não, ele não era um pobre construtor de pontes. Ele era a própria ponte que ligava uma e outra margem, o finito e o infinito, o relativo e o absoluto. Era um anjo perdido entre a terra e os céus.

domingo, 28 de junho de 2015

Haikai do Viandante (238)

Rodríguez Castelao - A casa do cruceiro (1922-29)

um velho cruzeiro
no frio do mármore cabe
um homem inteiro

sábado, 27 de junho de 2015

Expressão do Ser

Willian M. Harnett - Music and Literature (1878)

O romantismo viu a arte como uma expressão comunicativa da subjectividade do artista, das suas emoções e dos seus sentimentos. Nesta concepção há uma visão quase biográfica da obra de arte. Mas não será isto um equívoco? Que interesse pode ter a subjectividade de alguém, por mais complexa que possa ser? O que é importante não são os sentimentos ou as emoções singulares, mas aquilo que, através delas, se manifesta. Se um artista o é efectivamente aquilo que fala nele não é ele mesmo mas algo que o ultrapassa infinitamente. O eu que fala no poeta lírico não é o da subjectividade do poeta mas daquilo a que uma longa tradição deu o nome de Ser.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Entardecer

Paul Signac - Le Canal Saint-Martin, Paris (1933)

O dia declinava. Sentou-se à janela, o gato saltou-lhe para o colo, ronronou. Distraidamente, como se fosse um hábito antigo, começou a acariciá-lo. Fazia-o com lentidão bem medida, a necessária para que o bicho ali ficasse. Enquanto a mão ia e vinha pelo dorso do animal, os seus olhos perscrutavam o velho canal. Ficava horas a ver os barcos passar e, em cada um, era ela que passava. Nascera naquela casa e habituara-se a ver a água correr. A sua vida desenrolou-se ali. Nela perdera os pais, nela ficara quando casou, nela permaneceu quando o marido morreu e os filhos se fizeram ao mundo. Agora, que só lhe restava o gato, ela olhava da janela e deixava-se embalar no ritmo da tarde. Por vezes avistava uma sombra e logo descobria que era ela a sombra que entardecia no ronronar do gato, no deslizar do barco sobre águas.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Conversão do olhar

Ricardo Baroja Nessi - Cansaço (1951)

O cansaço não é apenas uma reacção ao excesso de esforço físico ou mental. Quando assim, é um sintoma da necessidade de descanso, para que a mesma actividade possa ser retomada. Há todavia um cansaço mais essencial, aquele que nenhum descanso tem o poder de fazer desaparecer. Esse cansaço é o sinal de que a forma como concebemos o mundo e nos concebemos dentro do mundo está em contradição com aquilo que há de mais fundamental em nós. Esse cansaço é a voz que chama não ao descanso mas à conversão do ponto de vista, à conversão do olhar.