sexta-feira, 19 de junho de 2015

Símbolos e multiplicidades

Agustín Ubeda - ...Y se rompen los sueños (1990)

As múltiplas esferas do ser. Como poderemos entender isso? Tomemos, por exemplo, o caso do sonho, do sonho erótico, por exemplo. A um primeiro nível, estes sonhos simbolizam o desejo que perpassa nos seres humanos e que os constitui. Mas o desejo não é uma realidade última, mas apenas mais uma camada simbólica. No desejo erótico, simboliza-se um desejo de completude, e neste uma aspiração a ultrapassar a condição humana, numa cadeia de desejos e simbolizações que poderemos pressentir como infinita. Este pressentimento pode, por analogia, ser transferido para a esfera do ser, dando-nos a perceber a sua multiplicidade e, ainda, a possibilidade de cada uma delas simbolizar outra ou outras, num encadeamento sem fim.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Aprender a ler

Francisco Bores - La lectura (1934)

Ler. Que melhor coisa poderia haver na vida que deixar correr letras e palavras diante dos olhos? A decifração das combinações do alfabeto ocupara-lhe grande parte da existência. Ao pegar num livro a vida, sempre tão enigmática e destituída de significação, ganhava sentido no sentido que ele encontrava nas frases e nos textos. Um dia, ao ler, mais uma vez, o Quixote, adormeceu. Foi um sono pesado e atravessado por um estranho pesadelo. Via-se a ler e, de súbito, a realidade envolvente dissolvia-se, depois era o seu próprio corpo que perdia consistência. Apenas o livro permanecia mas, estranhamente, fechado e a crescer como se dentro dele houvesse vida. Durante semanas meditou o sonho e procurou o seu sentido. Seria a leitura inimiga da realidade? Seria o livro a única realidade e o resto, ele próprio, uma ilusão? Um sábado, depois de almoço, saiu de casa e mal chegou à rua pessoas, coisas, paisagens desenharam, perante os seus olhos, excêntricas combinações, caracteres vivos. Ao olhá-las, descobria-lhe o enigmático sentido. Lia. De tão espantado, gritou: aprendi a ler. 

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Poemas do Viandante (511)

Salvador Dali - El comité Marcha del Tiempo - Mariposa (1940)

511. Qual a matéria do tempo

Qual a matéria do tempo?
Uma rosa, uma luz?

Não. Nem o vento nem a água
nem os campos no outono.

Não. Nem o amor nem a vida
nem a lua no firmamento.

Uma sombra na alvorada
fia passado e futuro.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Enfrentar a fantasia

Rafael Durancamps - La del alba sería cuando salió Don Quijote 

Será o viandante como o Quixote? Tomará ele por gigante o que não passa de moinho. D. Quixote parte para encontrar a ilusão, o viandante sabe já que está na ilusão e se se faz ao caminho é para enfrentar as suas próprias fantasias. É para descobrir que um moinho é um moinho e um gigante é um gigante. Descobrir isso não é fácil, pois os seres humanos vivem sempre mais confortáveis se a ilusão desce sobre eles e os protege da realidade.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Além do prazer e da dor

Pierre Bonnard - Le Plaisir (1906)

O prazer foi, durante muito tempo, um campo de conflito feroz. Os prazeres bons e os maus, os prazeres do corpo e os do espírito, a hierarquia de prazeres, a relação do prazer com a dor, tudo isso foi objecto de dissecação e de dissensão. A viagem que cabe a cada homem, o seu confronto com a finitude e a aspiração ao absoluto, não exigirão uma outra posição? A querela sobre o prazer não será ainda uma forma de desatenção ao essencial? A viagem a que os homens são chamados exige que vão para lá do prazer e da dor, isto é, que vão para lá daquilo que os fecha sobre si. Não se trata de negar o prazer ou esquecer a dor, trata-se de os olhar nos seus limites e seguir viagem, seguir para além deles.

domingo, 14 de junho de 2015

A ocultação de si

José e Togores - Figura escondiéndose (1925)

Há duas formas como os seres humanos se entregam à ocultação de si. Uma, aquela que é mais compreensível, em que tentam afastar-se, de forma mais ou menos ostensivo, da claridade que é o espaço público. Não querem ou não suportam, por diferenciados motivos, que os holofotes incidam sobre a sua pessoa. Esta ocultação não é a fundamental e, na verdade, não é diferente do comportamento antagónico, o daqueles que ostensivamente se mostram na clareira pública e exigem que os holofotes incidam sobre eles. A segunda ocultação é aquela em que a própria pessoa oculta aquilo que há de essencial em si, aquilo que está para além da máscara que a pessoa é. Geralmente, esta ocultação é tão forte que os seres humanos se sentem reduzidos à sua máscara, e de si não sabem mais do que os revérberos desta máscara no espelho social.

sábado, 13 de junho de 2015

O grande escultor

JCM - Time on space. Baleal (2007)

O trabalho do tempo sobre a pedra esculpe estranhos arquipélagos. Neles, o viandante perscruta o pulsar da vida, as águas que escorrem, a flora que insiste em abrir-se para a luz. Ouve o murmúrio das ondas e espera. Deixa que o tempo se suspenda e, nessa suspensão, venha até ele o eco longínquo da aurora. Nesse momento, tudo estará coberto pelas águas e um barco virá para o levar. O imenso império oceânico chama-o para que, noutros lugares, ele contemple o grande escultor a trabalhar a pedra, a abrir canais, a desenhar territórios, a preparar o trabalho dos geógrafos do futuro.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Haikai do Viandante (236)

Emilio Sánchez Perrier - Atardecer en Triana (1907)

a tarde que cai
sobre o murmúrio das água
luz que vem e vai

quinta-feira, 11 de junho de 2015

O cavaleiro errante

Oskar Kokoschka - Cavaleiro errante (1915)

Tinha chegado ao fim da linha, pensou. Ouvia o correr das águas do rio e, nessas águas, via desfilar, cena atrás de cena, os episódios da sua errância. Quantas metas falhadas? Quantas oportunidades desperdiçadas? Quantos caminhos andados por engano? Não, não era um cavaleiro andante coroado de vitórias em mil combates decisivos. Era apenas um homem que caminhara de erro em erro até à noite em que tudo se desfaz. Fechou os olhos e entregou-se ao rumor das águas. Primeiro, pareceu-lhe um alvoroço confuso. Depois, a confusão ganhou em sentido no seu espírito e o rio caminha vasussurrante na planície. Por fim, quando a aurora despontou, era apenas um débil murmúrio que ecoava no seu coração. Levantou-se e naquele instante, pela primeira vez, soube o caminho a seguir e aquilo que o esperava.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

O ponto originário

Frantisek Kupka - À volta de um ponto (1911-12)

A trama da vida dos homens é tecida à volta de um ponto. É o ponto originário, secreto, oculto na profundidade do ser. Nesse ponto, falou a voz que nos convocou à vida. E é nesse ponto original e singular que continua a bradar essa mesma voz. Muitas vezes, é como se estivesse no deserto. Outras, porém, ela acorda o viandante que há em cada ser humano e põe-no a caminho.