quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Da multiplicidade das paisagens

Giorgio Morandi - Paisagem (1913)

Uma ilusão comum reside na convicção de que, na viagem, o viandante encontra múltiplas e diferentes paisagens, às quais, para sobreviver e prosseguir o caminho, terá de se adaptar. A ilusão não está na convicção da existência dessa multiplicidade, mas no facto de ela ocultar que o viandante traz em si, também ele, uma multiplicidade de paisagens que vai projectando no caminho, num jogo de revelação, no qual ele descobre aquilo que lhe pertence.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Um estranho sortilégio

Julián Momoitio Larrinaga - Ballet

Deixar o corpo elevar-se, suspender a gravidade, traçar um halo de beleza no espaço desolado do mundo. Quando as luzes se apagam e o movimento cessa,  os espíritos tornam-se corpo e o mundo acorda de um estranho sortilégio.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

As luzes do mundo

Otto Dix - Lichtsignale (1917)

A ânsia do homem pela luz leva-o muitas vezes a confundir as luzes do mundo com a luz do espírito. Basta, porém, alguma atenção para se vislumbrar, sob os efeitos das luzes mundanas, os sinais da morte e das trevas. Sempre que, pela mão do homem, a luz se excede em brilho e em exuberância, deveremos de imediato suspeitar que algo muito negro se acoita e esconde naquele brilho.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Haikai do Viandante (213)

JCM - A night at the opera (2008)

Para lá dos montes
põe-se um sol outonal.
Fria luz no horizonte.

domingo, 16 de novembro de 2014

Do papel do equívoco

Jean Dubuffet - Banco de equívocos (1963)

Quantas vezes a vida não é senão um banco de equívocos, de erros, de mal-entendidos? Perante isso, há a tendência para ver a fonte do mal nas capacidades interpretativas do sujeito. É ele que se engana, que interpreta mal as vozes que o chamam, que se deixa enredas nas teias do erro. E no entanto a palavra equívoco tem, na sua raiz, um outro ensinamento. Pode-se dizer que a ambiguidade presente no equívoco está na igualdade (āequus) das vozes que chamam (vocāre) o homem. É a própria realidade que o enreda e o leva à perda. Mas se assim é, poderá ainda a perda ser considerada uma perda? Não será antes um caminho de aprendizagem?

sábado, 15 de novembro de 2014

Estabelecer pontes

Camille Pissarro - Charing Cross Bridge, London (1890)

A ponte enquanto símbolo não é apenas aquilo que une dois pontos do caminho que, por um qualquer acidente, se cindiu. A ponte é o único caminho que resta ao viandante, pois a sua viagem é o contínuo estabelecer de ligações entre o aquém e o além, descobrindo, porém, que o aquém, o além e a ligação que os une são uma e a mesma coisa. Só se pode unir aquilo que já está unido.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Abandonar-se

José Bellosillo - Adentrándome (1992)

Onde estiver o corpo, lá se juntarão também os abutres (Lucas 17:37).

Penetrar no mistério, perder a materialidade, tornar-se cada vez mais inefável, quase uma sombra, quase uma luz. E a viagem não é outra coisa senão este abandono da gravidade, este tornar-se imponderável, este abandono do corpo para entrar no reino onde a luz pronunciou o nosso nome.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Poemas do Viandante (484)

Georges Seurat - Mulher sentada num prado (1882)

484. a dor desenfreada que se abre

a dor desenfreada que se abre
no coração

e pede que a sombra venha
sobre a luz

para que uma paz silenciosa
desça em ti

e assim te abras ao mistério
que há em mim

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O acesso

Al Held - Acesso (1967)

Quando nos perguntamos pelo acesso ao caminho tornamos esse acesso obscuro e enigmático. Mas o acesso ao caminho que nos cabe não é obscuro nem tem a natureza dos enigmas. Ele não é longínquo nem de uma realidade que nos transcende ou que pertença a outro tempo. O acesso está aqui e agora, está na mão que abrimos, nos olhos com que vemos, no coração que pulsa, na respiração que nos traz a vida.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Uma certa ânsia

JCM - Entre ruínas (2014)

Nunca as ruínas devem deixar de ser motivo de meditação. Encontramos nelas, por vezes, uma certa beleza que não existia antes do efeito do tempo trazer a perda. Se a meditação se prolonga começamos a entrever que essa perda é menos efeito do tempo do que de uma certa ânsia que habita a matéria e a conduz à derrocada pelo desejo do espírito que nela se encontra ausente.