terça-feira, 4 de novembro de 2014

Um mero grão de areia

JCM - My foolish world (2014)

Se se perguntar o que é a alienação, as respostas tenderão a dar uma visão social ou mesmo política do estar alienado. Esse tipo de alienação, por importante que seja, é já e só secundário relativamente a uma alienação mais funda e estruturante. Trata-se do estranhamento do homem relativamente à sua natureza, a alienação antropológica. Esse estranhamento nasce da convicção, socialmente induzida, de que o homem é qualquer coisa, de que ele é algo mais do que um mero grão de areia, perdido num deserto infinito. O cristianismo chamou a atenção para essa ilusão ao fazer nascer o Cristo, o filho de Deus, num lugar que era a marca da pobreza. O Filho do Homem afinal - e esse é o grande escândalo - não era mais que um mero grão de areia.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Em alto mar

Lyonel Feininger - Barcos (1917)

Só ilusoriamente podemos pensar a viagem como sendo feita em terra firme. A solidez do mundo, contudo, é uma aparência e ao viandante não resta outro caminho senão o das águas. Como um barco em alto mar, ele é arremessado pelas ondas e vê-se envolto em tempestades. Por maior que seja o temor, nada mais pode fazer do que entregar-se ao elemento onde navega, aceitando essa vontade que está por cima da sua própria vontade.

domingo, 2 de novembro de 2014

Haikai do Viandante (211)

JCM - Heimat XI (2007)

castanheiros em flor
abrem-se sobre a velha cidade
murmúrio e rumor

sábado, 1 de novembro de 2014

O passeio pelo bosque

Henri Rousseau - O passeio pelo bosque (1886)

Há na literatura espiritual uma analogia recorrente entre o paraíso e o bosque, o bosque deleitoso, esse jardim onde o homem reencontraria a sua natureza perdida com a queda. Essa visão deleitosa oculta, porém, algo de muito mais essencial. O bosque como lugar de contacto com a vida tal como ela é, fora das ilusões que o eu constrói na interacção social. De certa maneira, o bosque é o lugar das delícias e da luz, mas também do árduo contacto com os elementos telúricos e com a sombra. O passeio pelo bosque não é apenas a delícia dada pela ressurreição. Inclui nele a morte na cruz, para falarmos segundo a tradição religiosa do Ocidente.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Poemas do Viandante (482)

Bernard Cathelin - Autumn at Les Rebattières (1960)

482. não é tempo de transumância

não é tempo de transumância
no baldio da terra

não é hora de peregrinar
no teu corpo

não é este o instante da viagem
em que te espero

não é ainda o rio da eternidade
onde me aguardas

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Em tremor

Jesús María Cormán - 6.6 Richter scale (2001)

Não, não é a terra que treme, mas o viandante que, na sua viagem, sente, em temor e tremor, a presença inefável do totalmente Outro. Não é o fim do mundo, é apenas o começo, esse princípio que não tem fim, esse fim que não princípio. Não se trata da destruição mas do começo da revelação.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O outro lado

José Manuel Ruiz-Zarco Perez - Al otro lado, Nº 74

É sempre o outro lado que procuramos, mesmo aqueles que rejeitaram já a tentação do movimento e da mudança ainda é ao outro lado que aspiram. O outro lado, todavia, não está senão naquele lado onde já nos encontramos. O estranho lugar onde somos é, ao mesmo tempo, o mesmo e o outro lado. E não há mais nenhum lado a que se possa ir a não ser aquele onde se está.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A tradição e o coração

Albert Bloch - The Blind Man (1942)

Deixai-os; são cegos condutores de cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova (Mateus 15:14).

Cegos condutores de cegos. Esta referência, sempre tão citada, emerge, segundo Mateus, numa discussão sobre as tradições. O que está em jogo é a distinção entre uma tradição formal e ritualista, a dos escribas e dos fariseus, e uma orientação do coração proposta pelo Cristo. O coração, porém, deve ser entendido num espectro semântico muito mais amplo que o do mero sentimento. Trata-se antes da disposição do espírito e da luz que dele irradia. Quando a luz do espírito é substituída pelo código dos rituais, os homens tornam-se cegos. Eis um debate que preserva toda a sua actualidade.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Repouso e movimento

André Bauchant - Le repos au bord de la route (1932)

Talvez uma das mais fundas e inexplicáveis ilusões da espécie humana resida na distinção, ou mesmo oposição, entre o repouso e o movimento. Esta distinção está na base, por exemplo, da diferenciação entre a acção e a contemplação, entre Marta e Maria. Aquilo que o viandante aprende na viagem, porém, diz-lhe outra coisa, diz-lhe que se deve mover como se estivesse em repouso e repousar como se movesse. Diz-lhe que deve agir contemplando e contemplar como a forma mais elevada de acção. Diz-lhe que Marta e Maria não são duas irmãs, mas apenas uma e a mesma pessoa que acolhe, de múltiplas maneiras, o Cristo em sua casa.

domingo, 26 de outubro de 2014

A norma moral

Paul Ranson - The Blue Room or nude with Fan (1891)

Vivemos tempos em que se confunde - por vezes, de forma obstinada, contumaz, mas quase sempre com tonalidade farisaica - espiritualidade e moralidade. Esta última deriva, como o ensina o étimo latino, da vida social, e acaba por ser uma adequação ao espírito do tempo ou, em muitos casos ditos religiosos, uma rígida fixação em normas sociais abandonadas, mas que um dia operaram e fizeram sentido. A viagem espiritual, porém, não é um exercício moral. Convoca, por certo, a lei, mas não para julgar e punir os homens, mas para os ajudar a seguir o caminho onde aprenderão a despir-se de tudo o que é mundano, incluindo a norma moral.