quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A sombra que nos acolhe

JCM - Ruínas. Cabo Espichel (2014)

A sombra que nos acolhe não é apenas um lugar onde nos protegemos dos excessos do calor. A sombra é, ao mesmo tempo, a nossa condição e o observatório de onde olhamos a realidade. Como seres humanos, não somos nem trevas absolutas nem a pura luz, mas essa mescla que é a sombra. E é dela - dessa sombra - que perscrutamos o horizonte para delinear cada etapa da viagem que nos cabe.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Haikai do Viandante (201)

Ilse Bing - Kloster Reichenau am Bodensee (1929)

o velho telhado
cobre aquele segredo
nunca antes lembrado

terça-feira, 19 de agosto de 2014

O espelho e a face

JCM - Speculum I (2014)

Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Desde que me tornei homem, eliminei as coisas de criança. Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido. (Paulo, I Cor 13: 11-12)

Quem sou eu? Esta interrogação não é apenas o sinal de uma busca de identidade. É o sintoma de uma confusão. Aquilo que sei de mim resulta apenas do que vejo num espelho. Esta visão confusa não é um mero problema epistemológico, mas um indicador do grau de maturidade. A analogia trazida por Paulo remete explicitamente para isso. Vejo-me ainda como se vêem as crianças. A viagem do viandante é aquela que o conduz desta visão em espelho - toda a especulação é assim vista como um estado infantil da existência - para uma visão face a face. A viagem é uma transição da menoridade para a maturidade, a qual é esse momento em que me vejo tal como sou visto, em que me vejo face a face e descubro a minha própria verdade.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O próximo passo

JCM - Símbolos (2014)

Por vezes, o viandante encontra no caminho estranhos símbolos. Não indicam uma direcção, nem trazem consigo uma verdade indisputável. Apenas desencadeiam a meditação. E isso é o bastante. Estimulada pelo símbolo encontrado, a meditação autonomiza-se de tudo o que lhe é exterior. É nessa estranha clareira que o viandante decide o próximo passo.

domingo, 17 de agosto de 2014

Na densa névoa

JCM - Mitologias (o dia de  retorno de D. Sebastião) (2008)

Subir a escarpada montanha e adentrar-se na densa névoa, rasgar um caminho - o seu caminho - na pedra inóspita e velada pelos céus. Esta é a viagem do viandante. Move-o o puro caminhar, pois em cada passo há uma luz que se abre e o orienta - como se, estando ela ali, o chamasse de longe - na densa névoa que é a vida dos homens na Terra.

sábado, 16 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (468)

Ellen Auerbach - Under my umbrella (1949)

468. a mão suspende-se

a mão suspende-se
sobre a pele
e na sombra
tece-se a paisagem
onde ateado
o fogo alumia
o fim da viagem

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Lugar nenhum

JCM - Chemins qui ne mènent nulle part (2008)

Nunca meditamos suficientemente o verso de Rilke. Caminhos que levam a parte alguma são ainda caminhos? Não deverá qualquer caminho levar-nos a um lugar determinado, a um destino prévio e já constituído? O que significa então esse nenhum lado? Significa a indeterminação, em primeiro lugar. Significa, depois, que esse lugar para onde se caminha não existe, ele apenas poderá emergir do próprio caminhar. Na vida do espírito não são os lugares que determinam caminhos para ligação entre eles. É o caminhar que abre o caminho e o lugar. É a viagem que aflora a clareira e a determina, para logo a abandonar. O viandante caminha pois não pertence a qualquer lugar.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Haikai do Viandante (200)

Francesco Ferruccio Leiss - Ricordo di una serata nebbiosa (1955)

a luz desvanece-se
no frio segredo da noite
prodígio acontece

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Da ambiguidade do ritual

JCM - Raiz e Utopia (Ritual) (2014)

O ritual, como tudo o que é essencial na vida dos homens, possui uma ambiguidade constitutiva. O ritual é o processo pelo qual a vida social, religiosa, cultural, etc. transita do caos para ordem. É uma fonte de vitalidade e uma forma do homem lidar com o que há de desmedido e de transcendente. Transporta, porém, consigo uma grande ameaça. A ritualização da existência, se desligada do espírito que lhe deu existência, torna-se uma fonte de morte. Ritualizada e vazia, a vida perde o sentido.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

A presença do eterno

JCM - Ruínas, Évora (2008)

Esses lugares abandonados pela vida a que chamamos ruínas são sinais dispersos pelo mundo. Sinalizam o passar do tempo e a precariedade de tudo o que é feito pelo homem. Mas a sua insistência em persistir ultrapassa toda a medida humana e aponta para o que há de mais incompreensível para a nossa experiência. Ruínas, mais do que o restolho que a vida abandonou, são a presença do eterno naquilo que é tecido de tempo.