sábado, 10 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (101)

Miquel Rivera Bagur - Assossec (1989)

Vermelho deserto,
areia, sol, vasto horizonte.
A morte tão perto.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O tempo dos vendilhões

Stanley Spencer - Expulsion of the Money Changers (1921)

O episódio da expulsão dos vendilhões do templo é, juntamente com o dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César, um dos elementos matriciais da cultura ocidental. Se a separação entre Deus e César prefigura a separação entre religião e política, a expulsão dos mercadores do templo revela um topos cuja estrutura merece ser meditada. Há múltiplas leituras do acontecimento. Por exemplo, Mestre Eckhart, num dos seus sermões, faz uma leitura simbólica e espiritual, sem qualquer incidência política e social. A natureza simbólica dos textos evangélicos implica a existência de múltiplas leituras que não se excluem mas complementam. Este episódio, do ponto de vista social, não significa apenas a divisão dos espaços, a separação rigorosa do locus do espírito do locus do mercado. Significa também a sua hierarquia. As coisas espirituais estão acima das questões de mercado, de tal maneira que estas estão impedidas de se misturar com aquelas. No ideal regulador da vida do ocidente, esta separação e hierarquização sempre esteve presente, as coisas do espírito estão acima das questões do mercado e têm sobre estas preeminência.

A modernidade pode ser vista como um processo de subversão desta velha hierarquia. Lentamente, os mercadores expulsos do templo começaram a invadir as esferas que não lhe diziam respeito. Infiltraram-se na ciência e na política. Transformaram a ciência numa cadeia de apoio aos negócios e converteram a política à protecção do lucro privado dos vendilhões expulsos do templo. A vingança contra o templo de onde foram expulsos veio a seguir. Veio não apenas através da conivência entre os guardas do templo e os vendilhões, mas no acto de substituição do próprio templo. Os bancos são as novas catedrais onde os mercadores se entregam à corrupção do espírito e à corrosão do carácter dos homens. A vida, que um dia foi organizada em função do espírito, é agora toda ela voltada para o mercado e vivida em função do dinheiro. Os mercadores expulsos por Cristo voltaram e criaram os seus templos, onde o espírito não tem lugar, para invadirem e contaminarem todas as esferas da vida. No entanto, no fundo dos homens o episódio evangélico da expulsão dos vendilhões não deixa de ecoar, gerando a sensação de que alguma coisa está mal, de que alguma coisa insensata inverteu a natureza das coisas, de que o mundo está fora dos eixos.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (100)

Thomas Hart Benton - Impression, Camouflage (World War I) (1918)

Céus em turbilhão.
E nas águas partem barcos,
vai-se o coração.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Poemas do Viandante (383)

Gwen John - A Corner of the Artist’s Room in Paris (1907-9)

383. Esse lugar vazio

Esse lugar vazio,
não sei como preenchê-lo.
Espreito da janela,
vejo uma mesa e um livro,
vejo uma sombra lívida,
mas não consigo ver
onde está a tua mão
para perder-me nela.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (99)

Piet Mondrian - Composición 1916 (1916)

Naturezas mortas,
traço e cor sobre o papel,
jardins, casa e hortas.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Poemas do Viandante (382)

Caspar David Friedrich - Cemitério

382. ESCUTAREMOS UMA VEZ AINDA OS MORTOS

Escutaremos uma vez ainda os mortos,
as palavras silenciosas ciciadas
na penumbra da tarde,
o severo olhar vindo do outro lado,
o julgamento deixado sobre a história.

Todos dormimos na vida um sono,
o esquecimento da verdade,
a relíquia que todos cortejam
e que de todos se esconde,
ao erguer muros de pedra e ilusão.

Escutaremos uma vez ainda os mortos,
a verdade que lhes trouxe a morte,
a terra descampada onde repousam,
entre árvores erguidas para o alto
e o sonho da eternidade.

domingo, 4 de novembro de 2012

Sonetos do Viandante (5)

Michel Larionov - El desnudo azul (1903)

5. Adormecida sobre a terra pura

Adormecida sobre a terra pura,
a mão no rosto e, no corpo nu,
o véu da lua, seda e cambraia azul,
'strela selvagem, vento, água e fogo.

Puro delírio, seio aberto e suado,
rasto de sangue por amor chorado.
A tudo o sono esquece. Dor, maldade,
vida desfeita, o riso frio e imundo.

Nesta manhã desconsolada vens,
suave e sonâmbula, cobrir o dia,
com o segredo de uma rosa anil,

pura e perfeita, desmedida e bela.
Rosa que se abre sobre o corpo lívido,
rumor de pássaro no frio da tarde.

sábado, 3 de novembro de 2012

Serenidade

Miró Mainou - Serenidad (1968)

Este é o tempo que exige do viandante a maior serenidade. A violenta tempestade aproxima-se e não há abrigo onde se possa recolher nem homem que lhe estenda a mão. Nada depende da pequena vontade que lhe cabe. Resta a pura entrega ao acontecer e esperar o que à graça lhe aprouver.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Poemas do Viandante (381)

Paul Klee - A garden for Orpheus (1926)

381. Orfeu no jardim

Orfeu no jardim
sentado dedilha
a pesada lira.
Lágrimas nos olhos,
no coração a dor
e no peito a ira
por tanto desejo
lhe roubar o amor.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Haikai do Viandante (98)

Camille Pissaro - A Path Across the Fields (1879)

Amenas paisages,
velhos campos e caminhos,
 frutos e viagens.