quinta-feira, 31 de maio de 2012

Transparências

Eva-María Wilde - sem título (2000)

Tudo o que é transparente oculta, esconde, desvia o olhar. Quantas vezes sonhamos com uma consciência, a nossa, transparente a nós mesmos, para que nessa transparência possamos descobrir os motivos mais próprios do que amamos e desejamos ou dos nossos ódios mais fundos? Mas mal olhamos para essa consciência, logo que fazemos incidir a luz sobre ela, tudo se começar a turvar, a tornar sombrio, até que a opacidade mais densa cai sobre nós. Quem evidencia grandes e alegres transparências do seu ser muito quer ocultar. Devemos, por motivo de precaução, desconfiar da transparência dos outros. Da nossa, porém, devemos duvidar por uma questão de probidade.

Haikai do Viandante (79)

Jackson Pollock - Mural (1943)

estamos tão perto
uma girândola de cores
o espaço deserto

quarta-feira, 30 de maio de 2012

O desejo fragmentado

Kurt Schwitters - Los Angeles (1943)

Será a realidade uma colagem de fragmentos ou a sua imagem fragmentada resulta das múltiplas intencionalidades do nosso desejo? Relativos e finitos, suportamos o peso de uma faculdade de desejar sem limites. Coisas, objectos, uma paisagem, por vezes o sorriso outras um olhar, depois o toque de uma pele, para chegar a vez de um sonho ou de uma ilusão, tudo isto entra por nós, revolve-nos, cria uma dinâmica, estabelece um desequilíbrio no sistema hidráulico que nos liga ao mundo. Cindidos, fracturados, num mundo em estilhaços, desejamos o Absoluto, esse exercício de libertação das tiranias da relatividade. Este, porém, não desarma e sussurra: descobre-me em cada fragmento, naquele olhar que amaste, na pele que desejaste, no objecto que te fez sonhar, na dor a que fugiste. Estou aí, estou em cada lugar onde o mundo se estilhaça e decompõe, sou o ser em tudo o que deixa de ser, o desejável de cada desejo. Sou o teu desejo e a coisa desejada, sou a intenção desejosa e o prazer consumado.

Haikai do Viandante (78)

Jackson Pollock - Landscape with Steer (1935-37)

vento na paisagem
rasga a terra e para o céu
abre uma passagem

domingo, 27 de maio de 2012

Poemas do Viandante (269)

Kazimir Malevich - Airplane Flying (1915)

269. MALEVICH, AIPLANE FLYING

um voo de sisal
e os teus dedos
negros e amarelos
vermelhos e belos
escrevem segredos
num céu de cal

sábado, 26 de maio de 2012

Haikai do Viandante (77)

Jackson Pollock - Totem Lesson II (1945)

animais totémicos
cuidam da vida no mundo
dos homens anémicos

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Haikai do Viandante (76)

Jackson Pollock - Totem Lesson I (1944)

quimera ardente
guarda a noite em silêncio
louca e paciente

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A sabedoria do não saber

Max Ernst - Oedipus Rex (1922)

Todos esses fantasmas que transportamos em nós, essas sombras que cresceram no lugar onde o medo abriu brechas, são sintomas de um espírito pouco ciente do seu caminho. Não é que a sabedoria nos diga qual o caminho, que passos deveremos, com segurança e certeza, dar a cada momento. O caminho faz-se sem mapa, sem bússola, sem roteiro de viagem. A sabedoria está apenas no aceitar da incerteza, está em fazer da não ciência a única ciência que podemos e devemos transportar. Quando se chega aqui diz-se: não sei para onde vou, mas vou. Abandonados à peregrinação, ela tratará de trazer novos caminhos e outras metas, ela guiará o viandante que se entregou à volúpia do caminho. Na pura entrega à viagem, o medo e as sombras perderam o lugar que tinham tomada dentro do viajante.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Haikai do Viandante (75)

Jackson Pollock - Echo (1951)

traços negros traços
sobre fundo branco lembram
súbitos abraços

terça-feira, 22 de maio de 2012

Haikai do Viandante (74)

Jackson Pollock - Blue (Moby Dick) (1943)

a velha baleia
ainda no azul do mar
um fogo ateia