domingo, 15 de janeiro de 2012

Do medo e do desejo


(Imagem daqui)

O medo e o desejo são dois grandes obstáculos à vida do espírito. O medo conduz, muitas vezes, à fuga do mundo, ao retirar-se para um lugar especial onde não se possa, imaginariamente, ser atingido pela torrente da vida, a qual contém em si a própria morte. Temer o outro, o estranho, a exuberância da natureza, as ameaças da tecnologia. São múltiplas as figuras que parecem fundar o medo. Por seu turno, o desejo lança-nos sobre os seus objectos, incentiva a voracidade, o projecto de captura e de dominação da coisa ou da pessoa desejada. Entre o medo e o desejo, o espírito vive aterrorizado pelo fascínio que estas experiências exercem sobre ele. Ora o medo e o desejo contaminam a vida e a realidade com estas projecções da subjectividade, deformam-nas e tornam-nas uma cadeia que se abate inexoravelmente sobre a pessoa. A vida espiritual lida fundamentalmente com este medo e este desejo. Não se trata de eliminar o medo ou o desejo. Trata-se de os reconhecer naquilo que são e de reconhecer como eles pervertem a nossa relação com o mundo e os outros. Na religião, não se trata do medo da condenação eterna nem do desejo do paraíso, mas de fazer a experiência de religação com o absoluto, de  aproximação contínua à realidade tal como ela é, tal como ela nos solicita. Trata-se de uma atenção permanente à epifania do ser que se realiza a cada instante e da qual o nosso medo e o nosso desejo conduzem ou à fuga ou à tentativa de dominação.

Haikai do Viandante (27)

(imagem daqui)

ao fundo a serra
anuncia a treva que em breve
ensombrará a terra.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (26)

(imagem de vladstudio)

cai pelo jardim
a noite silenciosa
a arder em mim.

Do desapego

O desapego das coisas e das pessoas, essa exigência evangélica para quem pretende seguir o Verbo, não significa o real abandono dessas coisas e dessas pessoas. Significa muito simplesmente que o cuidado que coisas e pessoas exigem de nós deve ser considerado fora de qualquer interesse e expectativa subjectiva. Significa que eu não devo prender-me a nada a não ser ao Bem. Este desapego, porém, abre cada um de nós para as coisas como elas são e ensina-nos a lidar com elas na sua verdade. A vida do espírito não é uma fuga mundi e o desapego não é o afastamento das situações existenciais. Pelo contrário, a vida espiritual é um exercício contínuo de realismo e de atenção ao concreto da existência, é uma vida na verdade, que se torna possível pela eliminação do enviesamento que o ego traz consigo.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Poemas do Viandante (241)


241. POSEIDON


este canto
do vento
sobre a planície
é o murmúrio
de poseidon
ao subir
à superfície

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Poemas do Viandante (240)


240. ESTRELA POLAR

o mais antigo
e o mais remoto
vivem ainda
se colhes uma flor
ou deixas
o vento anunciar
entre nuvens
a alegria
da estrela polar

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (25)


sol, sombra e segredo
fazem da árvore floresta;
ali canta o medo.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (24)

(Foto de Rui Bela)

ondas circulares
tecem, na seda do rio,
anéis e colares.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (23)


manhã de neblina
anuncia-me a tua mão
pálida e fina.

sábado, 31 de dezembro de 2011

Peregrinatio ad loca infecta

O ano vai acabar, mas a peregrinatio ad loca infecta parece não ter fim. É aquilo que compete a nós, seres mundanos. Por vezes, consolamo-nos com a ideia de estarmos no mundo mas não lhe pertencer. Mas isso é ainda uma idealização, uma fuga mundi, no sentido pleno da expressão. É nesse mundo que nos compete peregrinar, visitar os locais de perdição, os tomados pelos miasmas da doença, aqueles onde nos esquecemos de quem somos. Se fomos enviados a esta terra e a este mundo, não será uma blasfémia dizer que não lhe pertencemos? Um novo ano vai entrar, segundo o calendário que tomámos por nosso. Se for essa a vontade do Altíssimo, e enquanto essa vontade permanecer, continuará a pregrinatio ad loca infecta. A que outros lugares poderíamos nós, pobres mortais, peregrinar, presos à nossa finitude? Uma boa viagem.