domingo, 27 de julho de 2025

Câmara discreta (29)

Constantine Manos, Russia. USSR, 1965

Retratadas ficaram apenas a tristeza e a melancolia nostálgica de um sonho de juventude. Ciosamente escondidos pela arte do fotógrafa, a raiva e o desespero de viver ali, naquele lugar sem nome, onde tudo parecia já uma ruína vinda de um lugar há muito morto e esquecido. A pose de quem espera - e nesse esperar entrega o corpo à fotografia - é o contraponto de uma esperança que habitou, um dia, aquela mulher quando jovem. Os sonhos dos verdes anos feneceram rapidamente, num mundo onde o verde é já o amarelo das plantas estioladas e secas pelo calor do desencanto.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Virtudes de Verão (5)

Ando Hiroshige, A Great Wave by the Cost, 1832

procuro nas veredas do vento

a virtude da verdade

o cristal aceso da crença

 

as ondas deslizam na areia

batalhões de gaivotas

esperam o troar dos tambores

 

os meus olhos são um espelho

onde o voo das aves

derrama a verruma da vida

 

Julho de 2025

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Arqueologias do espírito 34

Dante Gabriel Rossetti, Ecce Ancilla Domini, 1850
A descoberta do espírito é, ao mesmo tempo, a descoberta de uma diferença radical entre aquele que é espírito num corpo e o que é puro espírito. A este, uma tradição antiquíssima deu-lhe o nome de senhor; aquele, a mesma tradição colocou-o no lugar de escravo. Não porque o senhor exija a escravatura, mas porque o corpo, com a sua subjugação ao império da necessidade, inclina o espírito encarnado à servidão~: não do senhor, mas de si mesmo, dos seus desejos, dos limites que lhe prescrevem a finitude. Quando o espírito finito se reconhece na sua finitude e se oferece como servo do senhor, nesse momento, começa a sua emancipação e o caminho da liberdade.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Haikai urbano (79)

Claude Monet, Charing Cross Bridge, 1899
 Névoa sobre névoa,
sombras são barcos no rio.
Secreta cidade.

sábado, 19 de julho de 2025

Impressões 129. Dança

Ana Hatherly, sem título, 1972 (Gulbenkian)
É indefinida a matéria do mundo, sem contornos nem ordem, apenas um conjunto de potencialidades que se actualizam conforme aprendemos a olhar para ela. É o reino do caos. O cosmos ordenado é a pura aparência que dança no nosso olhar.
 

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Virtudes de Verão (4)

Max Pechstein, Verano en Nidden, 1920

temperar as paixões de cada dia

na água do mar

ou na erva-doce do esquecimento

 

um infinito desejo habita

a morada azul

de um corpo sem açaime

 

os córregos do pensamento

desenham mapas

de luz na geografia da vontade


(Julho de 2025)

 

terça-feira, 15 de julho de 2025

Histórias sem nexo 37. Dores

Hendrick Ter Brugghen, Demócrito, 1628
Demócrito demonizava Doroteia. Desejava-a no dédalo da demência. Demandava-a deitada no divã. Dominava-o a dor do desdém, o duro desprezo da dulcíssima diva. Demónio, dizia, destroçado pelo desafecto. Doido, dardejou-a, destruindo-lhe o decoro no doce e divino domicílio.

domingo, 13 de julho de 2025

Meditação breve (206) Cantar

Constant Puyo, Chant Sacré, 1899

Não é porque tenha por motivo o sagrado que um canto se torna sagrado. É o próprio acto de cantar que é em si mesmo sagrado. Eleva a voz para uma realidade que transcende o uso quotidiano, o qual, sujeito aos imperativos do hábito, tornou a fala numa manifestação da queda dos homens no reino da trivialidade.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Micronarrativa (76) Deslizar

Bill Jacklin, The Rink, 1996

Deslizam sombras na brancura do rinque. Fantasmas vindos de mil passados encontram-se ali, para em silêncio rememorarem os tempos em que a vida lhes pertencia. Não festejam nem lamentam. Limitam-se a deslizar, pois a uma sombra nada mais é permitido do que uma colecção infinita de deslizes. 

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Virtudes de Verão (3)

George Inness, Mañana, 1878

enfrento estes dias esculpidos

no vidro solar do mundo

com a coragem de um guerreiro

 

lanço às águas do mar o temor

do trevo azul do ocaso

e a incúria da exaltação

 

sou o prudente pastor e guio

o rebanho dos sonhos

por entre a erva crua da morte

 

Julho de 2025


segunda-feira, 7 de julho de 2025

Signo sinal 29. Solidão

Mario Sironi, Solitudine, 1925-26
Inscreve-se no rosto, abate-se sobre os ombros, cerra os lábios e inclina o olhar para terra. O corpo é então um sinal poderoso de uma queda ancestral, o signo do abandono na luz obscura do esquecimento. Um rápido olhar basta para decifrar o mistério e manifestar a verdade que atormenta quem foi tomado nas garras férreas da solidão.

sábado, 5 de julho de 2025

Haikai do Viandante (444)

Benvenuto Benvenuti, Mattino sul Mare, 1907
 de manhã o mar
abre-se ao vigor do estio:
viris vão os barcos

quinta-feira, 3 de julho de 2025

O sal do silêncio (125)

Mário de Oliveira, Benahadux, 1967
Diante das montanhas do silêncio, estendem-se, a perder de vista, as planícies de sal. Ali, nada cresce: nem florestas primitivas nem uma lavoura arcaica. Só o sal trabalha a terra, lavra-a para o esquecimento e abre-a para que a solidão se levante e encontre a sua casa nas montanhas banhadas pelo luar da mudez.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Virtudes de Verão (2)

Jacques Louis David, The Tennis Court Oath, 1791

em tribunal sem lei move-se

uma justiça urgente

a areia dos dias de verão

 

de sentença em sentença

o mundo arrasta-se

no pântano seco da glória

 

procuro julho nas sombras

de um mar saltimbanco

e adormeço no banco dos réus

 

Julho de 2025

domingo, 29 de junho de 2025

A memória do ar (41)

Toni Schneiders, Fykesunds bru im Hardanger Fjord, 1959

Sob o ar tinto pela escuridão, esconde-se a garganta devoradora do abismo. O silêncio do infinito paira como uma velha memória recalcada, que, de súbito, emerge na consciência e ali fica a dançar. Um vento frio empurra a massa de ar, enquanto o viajante perdido se abre ao perigo e à promessa de salvação.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

A sombra da água (41)

Walter Barthels, Gewitterstimmung, 1902

Quando a tempestade se aproxima a galope num cavalo de escuridão, a água abre os seus braços para acolher a sombra das nuvens e o temor dos homens que, perante a iminência do perigo, se escondem no silêncio servil da solidão.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Geometrias de fogo (41)

Ângelo de Sousa, Pintura, 1974 (Gulbenkian)

Uma casa cor-de-fogo é uma promessa estival perdida nos olhos de quem a vê. Arde lentamente, fundida no silêncio do dia, para oferecer às paredes uma aparência de labareda, um rasgo de incêndio, um lençol de chamas. Assim composta, vai dedilhando as cores quentes como quem dedilha um rosário, numa oração que os olhos vêem e o coração trémulo recita contra o dragão da noite.

domingo, 22 de junho de 2025

Virtudes de Verão (1)

Jakob Alt, The Garden of Laudaya,1841

entro nos dias de verão

revestido com o manto

púrpura da prudência

 

abro as janelas e deixo

o ar marítimo dançar

a valsa vazia da noite

 

como um ulisses cansado

disfarço-me na prudente

pobreza de ser quem sou

 

Junho de 2025



 

sexta-feira, 20 de junho de 2025

O Espírito da Terra (41)

S. Rothenfusser, Aufnahme von S. Rothenfusser, München, 1899
A paisagem abre-se em caminhos rudes, velhas sendas que rasgam florestas e campos, para que os homens, em devoção ao espírito da Terra, os percorram e escutem a respiração do mundo, a canção que sobe das profundezas e se abre à luz vinda dos céus. Até que chegam a uma clareira. Aí encontram, na abertura, um lugar para meditar sobre a grande dívida que têm por essa Terra, a sua primeira e última mãe.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Biografias 36. A leitora

Gertrude Käsebier, Portrait of Martine McCulloch, 1910

A leitora não tem vida, tem livros. Entra neles, como quem entra na casa de um amante incansável. Percorre cada divisão para descobrir os segredos, mas a alma arde de desejo pelo corpo que todo o livro esconde. Ler é um lento trabalho de desocultação do amado que se esconde por detrás das palavras. Despe-o lentamente, deixando o seu corpo de leitora inflamar-se de desejo, perscrutando o enigma daquele ser, desvendando-lhe o mistério, procurando prolongar o prazer, antes que o desenlace traga o fim. Acabada a leitura, ergue-se e, como uma ninfa insaciável, procura na estante outro livro, como quem procura um novo amante.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Diálogos morais 70. Fidelidade

Frances Benjamin Johnston, Kritik, 1898

- Olhas-me, desconfiada.
- Não te pareces comigo.
- Não? O pintor tem a sua liberdade.
- Não estou a discutir arte, pedi o meu retrato.
- E ele fez-me a mim.
- Tu não és eu, não te pareces comigo.
- Um retrato nunca é o retratado.
- O pintor escusava de ser tão infiel.
- Não falemos de infidelidades.
- Acusas-me de alguma coisa?
- Dispenso os pormenores da tua vida.
- Dispensas…, não parece.
- O pintor, podes crer, foi fiel ao produzir-me.
- Fiel a quem? A mim, que lhe paguei?
- Não, a mim. Só eu conto para ele.

sábado, 14 de junho de 2025

Pulsar de Primavera (12)

Pierre de Chevannes, Verão, 1873

despeço-me da luz primaveril

espera-me a casa do estio

 

navego no oceano das estações

procuro um porto de abrigo

 

os dias são ondas passageiras

no calendário da navegação

 

Junho de 2025

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Câmara discreta (28)

Ralph Gibson, From the somnambulist (Hand and doorway), 1968
Esse preciso instante em que a mão se revela num gesto quotidiano é também a hora em que o corpo se oculta. A câmara, na ânsia da discrição, torna-se metonímica: representa o todo pela parte, como se o todo fosse um excesso para os olhos, uma ameaça mortal de quem se expõe, sem resguardo, à presença da totalidade do outro. 

terça-feira, 10 de junho de 2025

Arqueologias do espírito 33

Marc Chagall, O Mito de Orfeu, 1977

Sempre que escavamos, como bons arqueólogos, o solo do espírito, encontramos, camada a camada, o mito. Foi através dele que espírito entrou no mundo e ainda, nos dias de hoje, nos piores momentos da existência do homem, é a ele que recorre para espraiar uma sombra benévola - por vezes, perigosa e malévola - sobre a existência. Essas histórias bizarras - tantas vezes, absurdas - trazem, envoltas em sombras, solidez à vida e promessas para a morte. Mesmo quando o espírito se eleva às regiões mais puras do pensamento, é na terra do mito que as suas raízes penetram, para o alimentar e o reter ligado à vida.

domingo, 8 de junho de 2025

Haikai urbano (78)

Jack Delano, Foggy Night. New Bedford, Massachusetts, 1940

 Mistérios da noite
rasgam sombras na cidade.
Silvo no silêncio.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Pulsar de Primavera (11)

Jorge Barradas, Paisagem, 1965 (Gulbenkian)

 trazem a flor da incerteza

os dias de junho

 

regam-na com a luz do ócio

na tempestade da tarde

 

e ela floresce no saibro

sonoro do silêncio

 

Junho de 2025

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Impressões 128. Transfiguração

Henri Michaux, sem título, 1939
Estranhas metamorfoses ocorrem no interior da terra. Uma semente germina e, quando se manifesta à luz do sol, o que os olhos vêem é um novo animal, uma espécie ainda não catalogada, um ser que não se enquadra em nenhuma taxinomia. Tão espantosas são essas transformações que delas ninguém fala. Uns por medo, outros por reverência, outros porque não sabem o que dizer perante a desordem que irrompe no mundo e rasga o cenário onde todos habitam.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Histórias sem nexo 36. Tragédia

Rafael Barradas, Jugadores de naipes, 1917

Trasíbulo e Trajano trocaram tratados, traficaram, nas trevas, com tribos de trogloditas, transformaram, às trindades, tragédias e trenódias no troar trambiqueiro das trupes de truões. Trapaceiros e trapezistas treinados na trave tremeluzente da traição.

sábado, 31 de maio de 2025

Meditação breve (205) Acusação

Dorothea Lange, The Defendant, Alameda County Courthouse, California, 1957

Toda a acusação contém em si um peso que recai sobre o acusado. Esse peso varia na proporção inversa ao grau de culpa.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Pulsar de Primavera (10)

León Kossoff, Red Brick School Building, Willesden, Spring, 1981

 a luz solar reverbera presa

na trama da tarde

 

homens passam submissos

à astenia primaveril

 

só os ciprestes dançam

na fluidez silenciosa do horizonte

 

Maio de 2025