quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Meditação Breve (188) O tempo

Elliott Erwitt, Paris, 1989

Pode-se imaginar que a causa final que levou à invenção da fotografia tenha sido a de congelar para a eternidade um momento, do qual se expulsa o movimento e com ele o tempo. Depois, há fotografias em que o movimento se liberta e o tempo retoma o seu velho poder. O vento não deixará de fustigar os guarda-chuvas, o homem não parará o seu movimento em direcção aos lábios da mulher, o bailarino continuará a dar os passos que o mantêm entre o céu e a terra, como se a eternidade não fosse mais do que um tempo sem fim.

domingo, 22 de janeiro de 2023

Geometrias de fogo (6)

Marc Chagall, War, 1964-66

São os piores dias aqueles em que fogo cai do céu ao som das botas cardadas. As labaredas pesam como rochas gigantescas e esmagam a terra e o que nela se move. Ao longe, vê-se a cintilação e um enorme fulgor, mas o espectador sabe que não são línguas de fogo a descer sobre o cenáculo, mas o lumaréu vindo do inferno que os homens trazem dentro de si.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A Luz de Inverno 5

Ramón Casas Carbó, Invierno, 1893

Uma chuva ardente cai

sobre a sombra da tarde,

sobre o vazio das ruas.


O frio floresce nos corpos,

prende-os dentro de casa,

simula-lhes solidões.


No crepitar da lareira,

o homem escuta a voz

das aves da Primavera.


Janeiro de 2023

 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Micronarrativa (64) Viagem

Ernst Haas, Utah, 1952

A imagem extática de uma natureza que espera, uma paisagem delicada onde os mais terríveis segredos se escondem, para que o silêncio os guarde e não os deixe cair, como um trovão retumbante, sobre quem passa. Esse fundo sem fundo aguarda-te e tu, perdido na névoa da ignorância, precipitas-te para ele, arrastando tudo atrás de ti, como se esse mundo silvestre fosse o lar onde a esperança te aguarda.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A sombra da água (6)

Edward Steichen, Late Afternoon - Venice, 1907

A noite desce sobre o rumor das águas, é uma sombra vinda de um mundo sem nome. A luz ainda resiste como se tivesse nela a força para suster a escuridão. A vida, porém, passa indiferente como se a vertigem que a habita a impedisse de olhar aquilo que nela se desenrola. 

sábado, 14 de janeiro de 2023

O sal do silêncio (94)

Rudolph Eickemeyr Jr., In the Valley of the Beaverkill, 1890
Era o lugar onde homens chegados à transparência poderiam encontrar abrigo. Ali não haveria quem lançasse atrás deles os cães da perseguição e os lobos do desdém. Uma atmosfera pura cobria a terra e o vento ou o cântico dos pássaros de Verão eram ainda uma memória do silêncio, onde, perdidos no cristal da existência, encontravam o peso do seu corpo.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

A Luz de Inverno 4

Gustave Loiseau, The Eure River in Winter, 1903
Longas e frias são as noites
que o Inverno transporta

no segredo da memória.


Se chega a aurora, tudo

se cobre com o verniz

mudo da melancolia.


Pássaros poisam nos ramos

despidos da solidão

e cantam velhas canções.


Janeiro de 2023

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

A memória do ar (6)

André Kertész, Washington square at night, New York city, 1954
A noite rarefaz-se numa atmosfera de melancolia. Um vento suave corre entre ramos despidos, açoita com bonomia quem se atreve a enfrentar a solidão, escava em silêncio um buraco no lençol nocturno, para que o dia, com a sua luz de âmbar, venha numa aurora deslumbrante, como uma noiva que chega ao altar.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Pintura e haikus (28)

António Sena - Deep, 1975

De azul em azul
o mar no céu se confunde.
 Trémulo horizonte.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Geometrias de fogo (5)

Paul Klee, Fire Wind, 1923
Se o esquecimento se debruça e cobre as planícies do coração, se os rios se escondem da cintilação da luz, se os cabelos das mulheres perdem a fulguração dos crepúsculos do Verão, então um vento de fogo cobre a Terra, inventando novas figuras onde a luz reverbera, para aquecer os corações gélidos, atear as águas que em tumulto procuram a foz, incendiar na ondulação do amor os cabelos das mulheres.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

A Luz de Inverno 3

Boris Kustodiev, Winter, 1916

O Inverno traz silêncios

na sombra fria das árvores,

no rumor azul da tarde,


Os ramos despedaçados

deixam cair folhas secas

sobre a terra nua do Sul.


O teu corpo ilumina-se,

se as minhas mãos vazias

dançam na noite das tuas. 


Janeiro de 2023


 

domingo, 1 de janeiro de 2023

A sombra da água (5)

Otto Scharf, sem título, 1895

São águas tão tristes as que correm devagar, como se abrissem o caminho contra obstáculos desmedidos e carregassem com elas o peso de cada sombra. Enquanto rumam levadas pelo fluxo do tempo recebem em depósito a gravidade das imagens que o mundo sob o céu fabrica para que cheguem, como um enigma vindo do passado, à solidão do oceano.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Impressões 108. Uma revelação

Andre de Dienes (Dienes Andor), Paris, 1936
O súbito matrimónio entre o fulgor da luz e a sombra da névoa abre aos olhos o segredo que, dia após dia, o tempo oculta. Tudo o que se vê não é mais do que uma impressão que os olhos desabituados do espanto das primeiras coisas tomam como realidade substancial, de contornos precisos e existência sólida. Passeamos no mundo caminhando de impressão em impressão, ignorantes de que nós próprios não somos mais que meras impressões inscritas nas areias movediças de uma praia de águas alteradas.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

A memória do ar (5)

Ernst Haas, Salzburg, Austria, 1945
A névoa é o ar condensado sobre os tectos da cidade. Assim, recolhe numa memória as pedras que se erguem aos céus e as pessoas que passam indiferentes, como se o ar não existisse e nele não pulsasse a possibilidade da vida, mesmo quando se desloca num torvelinho de violência, preso a uma vontade incompreensível. Então, é um pedra que bate e abre um caminho que ninguém tinha esboçado na fogueira da imaginação.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A Luz de Inverno 2

William Congdon, Winter, 1950

 A chuva inunda as ruas

com o seu véu de tristeza

presa na escarpa das horas.

 

Passou o Natal ao ritmo

das coisas vindas de longe

no turvo trenó do tempo.

 

Um silêncio sobre a terra,

a beleza do que passa

no veleiro do crepúsculo.

 

Dezembro de 2022

sábado, 24 de dezembro de 2022

Geometrias de fogo (4)

Thomas Cole, Expulsión. Luna y luz de fuego, 1828

Poderia ser uma canção lunar ou o rasto de um cometa perdido. Poderia ser o fogo que arde em todo o amor ou a explosão que trouxe do quase nada este universo. Poderia ser a sombra incandescente do silêncio ou o halo de um corpo transido de frio. Era, porém, outra coisa, transbordante e sem nome, pois tudo o que o fogo unge está para além de toda medida e de qualquer nomeação.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Câmara discreta (19)

Eugene Robert Richee, Marlene Dietrich, 1931

Os sonhos tinham-se esgotado, restava uma memória antiga, o cilício do passado e a cintilação abscôndita do olhar, onde o ódio e a raiva dançavam no vertiginoso ritmo da sagração da Primavera. O tumulto do coração e a revolta do corpo eram como um poema longamente decantado de boca para boca. Quando o vento suspendeu a sua viagem sem fim, uma sombra ofereceu-se à benevolência da câmara, para que o arquipélago da dor encontrasse um porto para ancorar.

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

A memória do ar (4)

Clarence Laughlin, Imagination, 1944

O ar é uma musa discreta, inspira sem se deixar ver, arrasta quem o ignora, eleva a quem com ele sabe dançar. Por vezes, deixa-se arrastar na violência da tempestade. Outras, é o zéfiro que cobre com brandura discreta os corpos tocados pelo aguilhão do fogo.

sábado, 17 de dezembro de 2022

A Luz de Inverno 1

Camille Pissarro, Morning, Sunshine Effect Winter, 1895

Esperamos o Inverno

com a sua luz de cristal

e uma sombra de neve.


Esperamos os dias frios

recolhidos na caverna 

onde esquecidos sonhamos.


Esperamos a leveza

dos pássaros que partiram

para o silêncio do sul.


Dezembro de 2022

 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

O sal do silêncio (93)

R. Köhnen, Alte Mühle, 1908
O silêncio que devora os anos traz nele um vocabulário escrito com o alfabeto da memória. São palavras sem vocação para serem proferidas, sem poder de serem inscritas na folha rasa do papel, palavras que ressoam no bater do coração, na circulação do sangue, no sal que tolhe o movimento da língua e abre o espírito para a ciência da eternidade.
 

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Geometrias de fogo (3)

Maria Helena Vieira da Silva, A biblioteca em fogo, 1974

Cada livro é um incêndio e uma biblioteca não é mais do que uma estrela à volta da qual orbitam, na cegueira das suas próprias trevas, esses estranhos planetas que são os leitores. Cansados de escuridão, buscam a luz. Exaustos de frio, procuram o calor. Recebem um pouco de cada um. Se tiverem sorte ser-lhes-á oferecido o dom da inquietação.

sábado, 10 de dezembro de 2022

A sombra da água (4)

René Burri, Former Summer Palace. Dead lotus flowers on the Kunming Lake. Beijing, China, 1964

As águas do esquecimento dormem sob a vigilância dos céus. Cobrem-nas a folhagem da névoa, a sombra suave do dia que passa. Ali pulsa a morte destilada pelas flores de lótus que se precipitam na geometria a que o tempo as reduziu. Um segredo cresce, refracta-se nas pétalas desaparecidas, abre-se para o silêncio que a tudo resguarda do tumulto da vida.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

O Ritmo do Outono 12

George Iness, Spirit of Autumn, 1891

O tempo a tudo destrói

e o teu ritmo cessará

 

na minha dança outonal,

no instante em que o solstício

abre os dias à luz de Inverno.

 

Pobre e pálido coração

preso no cintilar da noite.

 

Novembro de 2022

 

domingo, 4 de dezembro de 2022

A memória do ar (3)

Artur Pastor, Exposição virtual Geometrias do Algarve, décadas de 60-70 (ver aqui)
A brancura dos sonhos fende paisagens de azul, para que o ar, com a sua memória inquieta, deixe crescer, sobre a terra, o espanto que os olhos dos homens hão-de descobrir, sempre que se sentirem perdidos entre a imensidão do oceano e o infinito dos céus.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Pintura e haikus (27)

Gerhard Richter, Abstraktes Bild, 1995

A matéria líquida
faz-se pedra, faz-se cor,
faz-se ave e voo.
 

terça-feira, 29 de novembro de 2022

A sombra da água (3)

Robert Demachy, Bords de Seine, 1906

Um rio desliza entre as margens. Vai preso à velha ciência da passagem. Leva com ele o segredo das aves que partiram, das árvores a que os dias roubaram as folhas, dos desígnios que incendiaram corações, para logo serem esquecidos. Transporta no dorso azul a tessitura dos olhares que nele se perderam à procura de um sentido mais alto que ali se escondera. 

domingo, 27 de novembro de 2022

O Ritmo do Outono 11

Rafael López Blázquez, Otoño, 2001

A rosa presa no espelho

floriu sob o peso do vidro.

 

Um incêndio feito crepúsculo.

Uma sombra de seiva e pétalas.

Um grito na glória da noite.

 

A luz morre na lentidão

do corpo cansado da rosa.

 

Novembro de 2022

domingo, 20 de novembro de 2022

Geometrias de fogo (2)

Paul Klee, Fire Wind, 1922

O fogo é uma cornucópia de ilusões trazida na ondulação dos ventos. Ergue-se sobre a terra para brilhar na escuridão da noite, rasteja se o dia cresce no horizonte, adormece nos braços do oceano quando o cansaço lhe torce a geometria e o arrasta como um ébrio perdido no caminho. 

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

A memória do ar (2)

James Thrall Soby, Alexander Calder with Steel Fish, in his garden,Roxbury, 1934
Por vezes, o vento suspende-se para que homens e objectos possam repousar sobre a terra, mas logo o ar, tomado na sua inquietude, requer que tudo se mova. Então, os ventos correm e o mundo inclina-se à passagem do mais dissimulado de todos os elementos.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Meditação Breve (187) A Roda

James Valentine, The Wheel, ca 1900

Todas as coisas têm o poder de se tornarem símbolos e desse modo indicarem outras coisas. O que haverá  de mais prosaico do que uma roda de diversão? No entanto, ela facilmente se deixa ler como uma roda da fortuna. Os que nela vão fazem a experiência da mutação contínua da sua própria posição no mundo. Nada na terra é eterno. O que sobe descerá, o que desce elevar-se-á.