segunda-feira, 12 de abril de 2021

Micronarrativa (52) Pátria do silêncio

Rui Filipe, Fuencarral , 1953

Há lugares onde acontecem as coisas mais estranhas. Lentamente, quem neles vive vai moderando a vontade de falar, a voz perde o timbre e o ritmo e, por fim, emudece. Então, os contornos do corpo começam a dissolver-se, a figura dilui-se e a pessoa torna-se invisível. Na pátria do silêncio, todos os que a habitam são invisíveis.

sábado, 10 de abril de 2021

Impressões 79. Figuras insones

José Dominguez Alvarez, Casario e figuras de um sonho

Figuras insones e ao mesmo tempo perdidas dentro de um sonho erguem-se no silêncio da praça. Se caminham, fazem-no lentamente, como se o tempo se retraísse na sua marcha. Se param, olham para lado nenhum. Das suas bocas não nascem palavras. Dos seus olhos, não vem qualquer brilho. Reúnem-se e depois separam-se, sem que nenhuma perceba a razão de uma e de outra coisa. Todas pensam estar rodeada de fantasmas. Tremem, se um pássaro poisa no ramo nu das árvores.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

A Sarça Ardente - 77

Eduardo Nery, Estrutura Ambígua, 1969
Descem pela fímbria
dos dedos,
trazem metáforas
de âmbar e fogo.
Sombras e silêncios
de uma paixão
nascida na névoa
da memória,
no fogo da sarça ao arder.

Março de 2021

domingo, 4 de abril de 2021

Meditação Breve (155) Constelações

Kazimir Malevich. Red Cavalry, 1928-32

O mundo compõe-se de linhas e manchas, de estratos onde aquilo a que se chama realidade se esconde, para ser encontrada, milénios depois, por arqueólogos dedicados. Do heteróclito que surge perante a visão, os olhos arqueológicos vão, a pouco e pouco, introduzindo separações arbitrárias, desenhando figuras como as que se descobrem no céu e a que dá o nome de constelações. Aquilo a que, apaixonadamente, chamamos realidade, ou seres individuais ou colectivos tem a verdade de uma constelação.

sábado, 3 de abril de 2021

O sal do silêncio (58)

Eugene Robert Richee, Louise Brooks, 1928
Do alçapão da noite chega a vida. Onde tudo era trevas e silêncio, de súbito emerge um rosto, umas mãos e tudo aquilo que não tendo importância para ser o sal da vida. Não é, mas mesmo as aparência são já um sinal de emancipação da negra escuridão.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Arqueologias do espírito 24

Francisco Metrass, Pastores Guardando o Rebanho, Sec. XIX

Não será das mais arcaicas imagens, aquela que junta numa unidade o pastor e o seu rebanho. A pastorícia, na economia do desenvolvimento da espécie humana, é um acontecimento recente, demasiado recente. No entanto, a sua força é de tal ordem que se tornou metáfora e símbolo com que os homens pensam a relação de uma comunidade com os que têm a função de a dirigir e conduzir salva ao aprisco. No rebanho, simboliza-se a unidade do conjunto dos homens e também a sua necessidade de possuir um condutor. O pastor cedo emergiu como o símbolo daquele que tem por dever conduzir os homens. O bom pastor.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Haikai urbano (67)

Nikias Skapinakis, Quintais de Lisboa, 1956
Quintais de Lisboa,
sombras vindas do passado,
imagens que ecoam.
 

quarta-feira, 31 de março de 2021

A Sarça Ardente - 76

Helena Almeida, sem título, 1972
O ténue tremer do mundo
suspende-se na pétala
de uma rosa,
na sombra da casa
onde o dia nasceu.

Como sibilas, as palavras
chegam cheias
de insinuações
e logo se desfazem
em sílabas trementes de sal.

Março de 2021

terça-feira, 30 de março de 2021

Meditação Breve (154) Tempos modernos

Jeffrey Smart, Autobahn in the Black Forest I, 1979-80

A modernidade é uma imensa cicatriz no mundo. Começou como uma ferida, com o tempo cicatrizou, mas nunca se apagou o rasgão na Terra. Mesmo onde o arcaico e o enigmático persistem, os tempos modernos chegam, rasgando os tecidos, impondo a rasura do que é claro e distinto ao que, por natureza, só pode ser obscuro e sombrio.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Impressões 78. Do poente à aurora

Falcão Trigoso, Poente Algarvio, 1913

A espuma do dia dissolve-se na luz do poente. Depois, chegará o pântano do crepúsculo, feito de ardis e equívocos. Por fim, será a hora da noite, onde tudo o que existiu durante o dia se dissolve no nada e espera a vinda da aurora, com as sua promessas de luz eterna, para que ganhe contornos e regresse à ao mar azul da vida.

domingo, 28 de março de 2021

O pelicano

René Burri, Le Pelican de Mykonos, Greece, 1957

Todos as manhãs o homem percorria o cais. Não tinha qualquer traço que o diferenciasse dos outros habitantes da ilha. Nunca esquecia o boné e a flauta. Misturava melodias tradicionais, algumas muito antigas, com improvisações, pois o tempo e o treino deram-lhe um domínio perfeito do instrumento. Era sempre acompanhado por um enorme pelicano. Este surgia quando ele tocava certa composição religiosa inspirada no sacrifício de Cristo. Às primeiras notas, a ave vinha do nada e acompanhava o tocador de flauta até se dissolverem no horizonte. Um dia, curioso, abordei o músico e perguntei-lhe de quem era aquele pelicano. Respondeu-me de modo estranho. O pelicano é aquele que é, e aquele que é não pertence a ninguém. 

sábado, 27 de março de 2021

O sal do silêncio (57)

Dordio Gomes, Casas de Malakoff - Paris, 1923

Imagina-se, ao arrepio da realidade, uma cidade silenciosa. Caminha-se por ela sem destino certo. Quando se chega ao fim de uma rua, esta logo se bifurca. Então, o espírito é obrigado a tomar uma decisão. Quanto mais se caminha, mais decisões têm de ser tomadas, pois o silêncio da cidade não é senão um caminho onde a realidade continuamente se bifurca.

sexta-feira, 26 de março de 2021

A Sarça Ardente - 75

Jaime Burguillos, Ocaso, 1976
Oiço a sarça ao arder
e abrigo-me
no rumor do incêndio.

O sangue sussurra
na errância,
vinho ávido de vida.

Parado, sigo pela rua,
espera-me
a luz do equinócio.

Março de 2021

quinta-feira, 25 de março de 2021

Meditação Breve (153) Pontes

Louis-Mathieu Verdilhan, Pièces d´eau à Mazargues

Uma ponte liga, por norma, dois pontos pertencentes ao elemento terra que a intromissão do elemento água separou. As pontes mostram o estabelecimento de uma comunhão entre aquilo que o tempo e a natureza tornou diferente. Ligar duas margens não é apenas traçar um caminho transitável. É tornar próximo o que estava afastado. Mostram, porém, uma outra coisa mais decisiva, o homem como pontífice, como construtor de pontes. Cada um traz em si o poder de aproximar o que está afastado. 

quarta-feira, 24 de março de 2021

Arqueologias do espírito 23

Yasuo Kuniyoshi, Refugees, 1939

Uma das experiências espirituais mais arcaicas será a do refúgio. Como muitas outras, também esta começou na concretude do corpo. O perigo que sobre ele descia fez com que a humanidade aprendesse a refugiar-se, a circunscrever-se num espaço de tranquilidade. A repetição da experiência levou-a não apenas a procurar o lar num locus amoenus, onde o espírito se poderia desenvolver, mas ainda a fazer da vida espiritual o autêntico refúgio. Todo aquele que a ela se entrega é um refugiado. Foge de um locus horrendus e procura a vida autêntica nessa abertura do espírito para além do mundo. 

terça-feira, 23 de março de 2021

Haikai do Viandante (408)

Henri Edmond Delacroix Cross, Sunset on the Lagoon, 1903-4

Águas da lagoa,
sombreiam crepusculares.
Margens do luar.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Impressões 77. Dos objectos mecânicos

Martien Coppens, Textile Machine, 1950s

Há perante tudo o que é mecânico um duplo sentimento. Em primeiro lugar, espanto pelo poder da engenharia, pela precisão da técnica, pela perfeição do movimento, pela geometria com que os artefactos se dão a ver. Depois, a decepção da sua frieza e, mais do que tudo, pela obsolescência que logo se manifesta em qualquer mecanismo.

domingo, 21 de março de 2021

A Sarça Ardente - 74

Salvador Dali, Musa de Cadaqués, 1921
O dardo do dia
trespassa
o coração incauto.

Abre-lhe uma ferida
de água
no crepúsculo da carne.

Um relâmpago arde
no cetim do céu
no repouso das horas.

Como uma seta
o dia voa
na luz dos teus olhos.

Março de 2021

sábado, 20 de março de 2021

O sal do silêncio (56)

André Kertész, Rue Du Cuédic, Le Havre, France, 1948
Entrou dentro da casa do silêncio, sentou-se à janela, pegou no livre de orações e, enquanto o dia deslizava para as trevas da noite, os seus olhos contemplaram, nas palavras tão conhecidas, os mistérios que, no seu enigma inviolável, se furtarão eternamente à astúcia e ao ardil da razão.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Haikai do Viandante (407)

Walter Leistikow, Lake Grunewald, 1898

O que permanece
no lago de Grunewald,
velado se tece.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Meditação Breve (152) Frivolidade

Janine Niepce, Buffet au champagne, Paris, 1963

Um exercício de frivolidade, não porque seja fútil beber champagne ou leviana a vida social, mas porque se representa que se bebe champanhe e se está num acontecimento social. Toda a frivolidade nasce de um movimento em que o self recua temeroso e se duplica através do uso do corpo como uma máscara protectora.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Arqueologias do espírito 22

Kerekes Gábor, Apple, 1991
Dádiva espontânea da natureza, os frutos ter-se-ão inscrito tão fundo no espírito dos homens, que estes não hesitaram em fazer de um deles o símbolo da sua expulsão do paraíso e da queda na vida mundana. De certa maneira, a maçã arrastou os homens na sua viagem para terra. Retirou-os dessa existência fora do espaço e do tempo e fê-los aterrar num corpo sujeito à duração. Da contemplação da viagem da maçã desde os ramos incessíveis até à terra dura, o espírito descobriu um modo para explicar porque se encontro presa na cela do corpo e na caverna do mundo.

terça-feira, 16 de março de 2021

A Sarça Ardente - 73

Aristide Maillol, Dans l'esprit d'une fresque, 1930
O vinho fremente da tua boca
brilha na escuridão
do firmamento.

Bebo-o no copo escuro do corpo,
e fulguro na ferida
a arder no incêndio da fonte.

Março de 2021 

segunda-feira, 15 de março de 2021

Impressões 76. No claustro

Charles Clifford, Cloisters of the Church of Saint John of the Kings, Toledo, Spain, 1858
Sentado no claustro, um homem contempla a estatuária presa nas paredes, mas não são as figuras de pedra aquilo que vê, nem o domínio artístico dos autores, nem a passagem do tempo, que também lá se encontra. Procura ali a desmedida que há entre o seu olhar e o infinito que se esconde nessa prisão que todo o claustro é.

domingo, 14 de março de 2021

Pintura e haikus (24)

Gerhard Richter, Abstraktes Bild, 1955
 Falésias de mármore
debruçam-se sobre o mar.
A luz do calcário.

sábado, 13 de março de 2021

Diálogos morais 59. Ateísmo

Josef Breitenbach, Dr. Riegler and J. Greno, Munich, 1933
- Meu Deus, como está desejável.
- Não estará a invocar o santo nome de Deus em vão?
- O meu desejo, espero-o, não será em vão.
- Além disso não estou desejável, apenas estou despida.
- Isso confirma que o meu desejo não será vão.
- Já vi que é um crente no seu desejo.
- Sim, sou-lhe muito devoto.
- Eu, pelo contrário, sou profundamente ateia.

sexta-feira, 12 de março de 2021

O sal do silêncio (55)

Rockwell Kent, Admiralty Inlet, 1922

Esse silêncio que nasce do despojamento da paisagem desaba perante o olhar. O coração suspende-se e espera que a luz se desfaça das sombras, para que tudo reverbere nas sílabas mudas de cada palavra que a boca se esquiva a proferir.
 

quinta-feira, 11 de março de 2021

A Sarça Ardente - 72

Gerhard Richter, Abstraktes Bild, 1995
O jardim no incêndio
da tarde
abre-se em aromas
de vento e água,
deixa fugir
as primeiras notas.

Uma melodia levita
na sombra
de um céu azul
sobre o sal
das dunas e o canto
agreste das gaivotas.

Março de 2021

quarta-feira, 10 de março de 2021

Arqueologias do espírito 21

Ferdinand Hodler, Los Alpes de Vaud vistos desde los Rochers-de-Naye, 1917

Nunca saberemos o estremecimento que percorreu o corpo do primeiro homem que viu as montanhas nascidas da terra elevarem-se e fundirem-se nos céus. Essa ignorância, porém, é compensada pelas reverberações sem fim desse acontecimento. Como uma pedra que cai nas águas imóveis de um lago e provoca uma ondulação que parece não acabar, também esse primeiro avistamento não deixou de criar ondas que se vão alargando, envolvendo cada novo tempo e fazendo com que os homens continuem a estremecer ao verem as mais sagradas núpcias, as que unem Céu e Terra.

terça-feira, 9 de março de 2021

Micronarrativa (51) A mulher bifronte

Gjon Mili, Double exposure of models wearing hat with heavy face veil, 1946
Como Janus, o deus bifronte, também ela tem dupla face. Uma virada para trás e outra para a frente. Olha compungida para o passado, mas não se atreve a descerrar os olhos que lhe diriam o futuro. A vergonha do que foi é menor do que o terror de chegar ao que será sem a inocência da novidade.