terça-feira, 7 de abril de 2020

Diálogos morais 36. O tempo

Constantine Manos, Shepherds with goat. Crete, Greece, 1964
- O que esperas?
- Que o tempo passe.
- Não é isso que ele faz continuamente?
- Nem sempre.
- Nem sempre?
- O tempo existe para nos contrariar. Quanto mais desejamos que passe, mais ele permanece imóvel.
- Não é verdade, olha um  relógio. Não brinca com o nosso desejo, avança indiferente e inexorável.
- Um relógio não é o tempo.

domingo, 5 de abril de 2020

A Sarça Ardente - 15

Sam Francis, Around the Blues, 1957-62

A discórdia nupcial das nuvens
ressoa em trovejos
na lonjura sem medida dos campos.

Cavalos pastam silêncios de erva
e uma sirene ecoa
ao longe, sobre a caruma dos pinheiros.

O ardor da solidão chama por mim,
enquanto espero
do anjo o anúncio do alvor da aurora.

Março de 2020

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Haikai do Viandante (390)

Robert Mapplethorpe, Orchid and Leaf in White Vase, 1982
Contra a escuridão,
em vaso branco floresce
a luz duma orquídea.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

O homem entre ruínas

Dmitri Kessel, A man walking through the remains of an ancient temple in Athens. 1944
Todas as manhãs era visto a passear entre as ruínas. Verão ou Inverno, chovesse ou fizesse sol, ao raiar da aurora ele aparecia e passeava, durante umas horas, para cá e para lá. Um passo lento, parecia querer absorver o espírito do lugar em cada aspiração. Chamavam-lhe, não sem ironia, o homem entre ruínas. Não se conhece quem tenha trocado alguma palavra com ele, ou quem dele se tivesse aproximado. Formou-se uma tradição de distanciamento e era nessa distância que ele ia e vinha. Um dia, desavisado, um forasteiro dirigiu-lhe a palavra. Ele estancou, olhou-o perplexo e todo o seu corpo se tornou imponderável. À vista de todos, ergueu-se aos céus e desapareceu atrás de uma nuvem.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Pintura e haikus (15)

Frederick Sommer, Paint on cellophane, 1957
Sinal e mistério.
Sobre um abismo de trevas
esquissos de luz.

sábado, 28 de março de 2020

Impressões 50. Uma mulher sombra

Ara Güler,Süleymaniye Mosque and the shore of the Golden Horn at Unkapani , Turkey, 1955
Como um murmúrio, uma mulher passa sorrateira, coberta de sombra, coberta de invernia. Os olhos inclinam-se em silêncio. Só o chão recebe a secreta luz que por um desígnio incompreensível tão pura deles nasce. 

quinta-feira, 26 de março de 2020

A Sarça Ardente - 14

Elmer Bischoff, #13, 1974

Rogo ao deus do Inverno e da noite
uma luz de rosas
sobre o esplendor da montanha.

Perco-me no sabor de uma laranja,
o fruto bebido em sorvos
de âmbar e gomos de maresia.

A caravela do desejo fez-se ao mar
e no oceano encontrou
um cardume na poalha dos teus dedos.

Março de 2020

terça-feira, 24 de março de 2020

Histórias sem nexo 6. A mulher muda

Salvador Dali, Cabeza de mujer, 1926
Uma mulher muda movia-se como uma mariposa, modelava a mudez, marcava o metro, marejava o mar. Magra e macilenta marcou o mundo com a moeda da madrugada.

domingo, 22 de março de 2020

Impressões 49. Música

Yousuf Karsh, Pablo Casals, 1954
De súbito, a música transforma-se em luz e puro o dia irrompe da mancha escura das trevas.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Haikai do Viandante (389)

Edward Weston, Hills and Poles, Solano County, 1937
Vento e silêncio,
solidão devastadora.
Searas de medo.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Diálogos morais 35. Simbolismo

Ansel Adams, Church and Abandoned Automobile, Tiburon, California, 1957
- Estranho simbolismo este.
- É verdade, a ruína de um carro abandonado.
- E uma Igreja nova neste descampado.
- Terrível é o medo.
- É verdade.
- Mal bate à porta, logo nos esquecemos dos ídolos.

segunda-feira, 16 de março de 2020

A Sarça Ardente - 13

Gustavo Torner, Amarillentos, con zona negra, 1957

O vagar da sombra
é um hálito
na languidez da canícula.

Os ralos rodeiam
a noite
com silêncios de água.

Uma lua de ouro
invoca
os poderes da memória.

Março de 2020

sábado, 14 de março de 2020

Meditação Breve (123) Medo

David Turnley, Fearful Palestinian Girl, 1995
Não é necessário que tenhamos uma longa educação em ambientes de terror para que o medo se torne parte da nossa natureza. Basta que a ocasião se apresente, logo se apaga tudo o que o negava esse medo e uma linguagem mais arcaica tome conta do coração e invada cada célula do corpo.

quinta-feira, 12 de março de 2020

Histórias sem nexo 5. Os doidos

Carlo Carrà, Bagnanti
Décio e Deolinda estão à distância. Desavenças, dores, dedos acusadores, não há dia que desavindos não desenhem entre eles um dédalo doméstico, uma duna onde o dano denuncia o odor do desprezo.

terça-feira, 10 de março de 2020

Diálogos morais 34. O guerreiro

Alfred Eisenstadt, Soldier says goodbye at Penn Station, New York, 1944
- Tenho tanto medo.
- Não te preocupes, não morrerei.
- Como sabes, a guerra...
- Eu fui feito para a guerra.
- E isso protege-te de quê?
- Como uma mãe, também a guerra protege os seus.
- Não brinques.
- Falo a sério. Sem eles o que seria dela?

domingo, 8 de março de 2020

Meditação Breve (122) Desabrigo

David Seymour, Children take refuge in underground shelters to escape the bombings,Island of Minorca, Spain, 1938
Não há lugar onde nos possamos abrigar. Tudo no mundo é incerto, mesmo no mais recôndito e seguro dos abrigos, pois não há quem de si se consiga abrigar.

sexta-feira, 6 de março de 2020

A Sarça Ardente - 12

Zao Wou-Ki, 21-14-59
Quarta-feira de cinzas
chegará
no cansaço do Carnaval.

Virá feita sombra,
erguida
no êxtase da carne em fogo.

Véspera do dia
que rente
à luz serei o som do teu nome.

Fevereiro de 2020

quarta-feira, 4 de março de 2020

Histórias sem nexo 4. O urbanista

Wassily Kandinsky, Amarelo-Vermelho-Azul, 1925
Hugo, o urbanista, ululava à saída do útero de Ursulina, a mãe. Urgente, urgente. Cortem-lhe as unhas, urgia, o dr. Humberto. Tratem-lhe da urticária, apliquem-lhe o unguento, vejam-lhe a urina, a ureia, a uretra. Ufff, urrou o Hugo sem urbanidade, que urso tão urceolado.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Meditação Breve (121) Passagens

Charles Marville, Rue du Chat-qui-Pêche, Paris, ca.1868
São estreitas as passagens que ligam mundos diferentes. Por elas só passará quem tiver de tal modo minguado que se tenha esquecido de si. Chegado ao fim da travessia será outro e outro será o mundo que o espera.

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Haikai do Viandante (388)

Cecil Beaton, Audrey Hepburn in the costumes for movie “My Fair Lady”, 1963
Uma fantasia
traz sonhos nunca sonhados.
Da noite faz dia.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Gatos velhos

James Van Der Zee, Smart Cat, 1931
Não foi tão difícil quanto pode pensar. Também me surpreendi, mas só uma crença ingénua na uniformidade da natureza pode achar acontecimentos destes um milagre. Não são, pois muitos são os caminhos que as coisas podem tomar. Formei o projecto dois meses depois de terem chegado cá a casa. Quando estava a ler, eles ficavam a olhar para mim, não miavam nem me interrompiam. Um dia tentei ensinar-lhes o alfabeto. O difícil foi descobrir o método. Descoberto este, facilmente aprenderam a ler. É o que vê, preferem policiais e clássicos ingleses da época vitoriana. A poesia não os tenta e dispensam o ensaio. Os óculos? Sem eles já não distinguem as letras. Os gatos também envelhecem.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

A Sarça Ardente - 11

Francisco Arjona, Composición III, 1984

Uma sombra
de água
arde-te no âmbar
das mãos.

O fruto do Inverno
desce ao sol
a encosta
madura da manhã.

Tudo se exalta
na recordação
do rumor
do desejo.

Janeiro de 2020

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Histórias sem nexo 3. O arqueólogo

Pablo Picasso, Still Life with Fish, 1940
O arqueólogo atirou o arpão. O peixe arfava enquanto era arrastado pela areia. Ar, ar, articulava o animal, enquanto o arqueólogo ardia como um arlequim, na alvura da alba, na aguardente apurada no alambique.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A mulher de sonho

Vicente Vela, Bodegón del ensueño, 1991
Quer que lhe fale da minha mulher. Será relevante para a terapia, presumo. Nunca a compreendi e nunca soube por que casei com ela. Talvez quisesse fechar esse assunto. Ela vivia nos seus sonhos. Não estou a ser alusivo. A vida de cada dia era o prolongamento do sonho que tivera durante a noite. Havia épocas de grande monotonia, pois todas as noites ela tinha o mesmo sonho. Tanto quanto percebi, pelo seu comportamento em estado de vigília, os sonhos tinham uma lógica incompreensível. Ignoro por que não enlouqueci. O que lhe aconteceu? Uma tarde, depois de almoço, disse vou dormir um pouco. Entrou então num dos seus sonhos mais recorrentes e desapareceu. Não a voltei a ver.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Diálogos morais 33. Loucos

Imogen Cunningham, Cemetery in France, 1961
- Estou a enlouquecer, ao vir aqui.
- Também eu.
- Não. Tu estás morta e os mortos não enlouquecem.
- Não?
- Os vivos, sim. Começam a falar com os mortos.
- E isso é sinal de loucura?
- Sim, os mortos não existem.
- Então também eu enlouqueci.
- Não é possível, estás morta.
- Estou, mas falo com um vivo e aqui os vivos não existem.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Haikai do Viandante (387)

Artur Pastor, Oceano Atlântico, sem data

Ondas vão e vêm,
rumorejam sal e espuma,
água e mistério.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

A Sarça Ardente - 10

Charles Marq, A un poète, 1984

Sem pássaros
para alumiar,
a Lua sulca
o silvo do silêncio.

Poisa luminosa
na resina
do fogo,
no ardor da tília.

Ouve-se no ranger  
do ramo
o tremor
do tear do tempo.

Janeiro de 2020

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Impressões 48. Os derrelictos

Sergio Larrain, Pisac, Peru, 1960
Como Cristo na cruz, também eles foram abandonados. Estão por ali, perdidos sem saberem o que se esconde para além da linha do horizonte. Como fantasmas, vão e vêm, mas na verdade nunca saem do mesmo lugar, do mesmo silêncio, da mesma hora que lhes marca o rosto com o estigma do esquecimento.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Diálogos morais 32. Anjos

Ilse Bing, Chairs with Leaves, Luxembourg Gardens, Paris, 1952
- A cadeira está vazia, podes sentar-te.
- Vazia? Não me parece.
- Ninguém a ocupa.
- Estás enganada.
- Enganada? Só vejo folhas mortas.
- São anjos cansados.
- Não brinques, anjos disfarçados de folhas? 
- Sim, fazem-se de mortos.
- Para quê?
- Para não caírem em tentação.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Haikai do Viandante (386)

Hiroshi Hamaya, Cherrytrees in bloom. Hozukyo, Kyoto, 1979
O silêncio fala
nas cerejeiras em flor.
Um fruto por vir.