Walker Evans, Pedestrians at Curb, Seen from Above, New York City, 1928
Não deixa de ser estranho o destino dos homens. Uns fogem da sua própria sombra, enquanto outros, sem parar, correm atrás dela. Imaterial e imponderável, a sombra é o centro de todas as actividades humanas. Não há acção em que a luz, ao iluminar o homem, não projecte uma sombra que o fascina e o atemoriza.
Paisagens de pedra e água, moradas onde o silêncio cresce, lugares inexpugnáveis à curiosidade dos homens. Ali se recolhem, solitários, aqueles que vão deixar a vida. Sentam-se e esperam que um anjo chegue e lhes recolha a alma. O corpo, então, desaparece, como se quisesse desmentir o adágio "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma", com o qual se jura pela conservação da matéria.
Alfred Eisenstaedt, Golfers’Ball, Esplanade Hotel, Berlin, 1929
A vida social - um baile, por exemplo - é um exercício de fuga à solidão. Começa-se sempre por fugir a esta, para depois se fugir de si mesmo e acabar por fugir do tremendo mistério que nos envolve.
Dançaram toda a noite. A princípio não os notei, mas, a certa altura, a forma como dançavam prendeu-me o olhar. Havia neles uma leveza que nunca vira, embora nunca tentassem distinguir-se dos outros casais. Conhece, por certo, aqueles pares que gostam de centrar em si os olhares, que se esforçam para manifestar uma distinção técnica e com isso parecem realizar um grande desígnio. Este era diferente, esforçava-se para ser apenas mais um. Quando a festa terminou, segui-os. Eles caminharam em silêncio e nunca deram as mãos. Chegados perto rio, pararam. Foi então que os fotografei. Nesse instante, sem que eu perceba como, desapareceram. Encontrei-os quando revelei a fotografia. Ali estavam eles, presos ao papel.
Andreas Feininger, Figurenarchitektur von Lyonel Feininger, 1971
Universos de pedra são como casas onde habitam homens silenciosos, clareiras onde tudo se vê mas nada tem sentido. Os seus habitantes caminham ao acaso, encontram-se e logo se afastam, sem que uma razão desfaça o enigma ou uma súbita iluminação lhes esclareça a existência.
Lord Snowdon, Ballet Dancers Rudolph Nureyev and Dame Margot, 1963
É apenas um instante, uma ilusão maculada de alegria, um fruto que se abre para a maturação. Depois, elevam-se e são anjos. Escondem-se nos telhados e vigiam os homens. Por vezes, uma ânsia de gravidade atinge-os. Nesse momento, poisam ao de leve nas ruas e caminham envoltos no seu corpo de luz.
Eve
Arnold, Gala Opening Metropolitan Opera, New York, 1950
A luz artificial, aquela que faz a glória da nossa civilização, tem o estranho condão de sublinhar o que há de obscuro e umbroso na realidade. Ao tocar num objecto ou numa pessoa, o que se manifesta, mesmo que, embotados pelo hábito, já não o notemos, é a sombra que a envolve.
Há quem sonhe com mundos circulares, possuído por um desejo de perfeição ou um anseio de beatitude. Depois, ao acordar, projecta o sonho no mundo e recebe nos seus olhos a sombra do mistério e o passaporte para o silêncio.
A manhã rompe o silêncio e abre-se sobre o mistérios dos pântanos. As árvores despem o luto e deixam que as cores atraiam para elas os olhares de quem está longe.
Rudy Burckhardt, Legs of Woman Walking Across Manhole Cover, New York City, 1939
O barulho dos saltos ao bater na chão ecoa ainda na minha memória. De súbito, levanta-se uma tempestade terrível e ela, temerosa, embrulha-se no silêncio da sua sombra. Caminha então como se levitasse ou um anjo a tomasse em seus braços luminosos para a entregar na casa onde um dia de júbilo a aguarda.
Frank Eugene, Miss Gladys Lawrence - The Seashell, 1910-13
Ela transportava sempre aquela concha consigo, levando-a,
uma vez por outra, ao ouvido. Então, ficava assim durante longos momentos. Depois, como se orasse, apertava-a nas mãos. De seguida, pousava-a e retomava o trabalho, aquele
que haveria de desfazer durante a noite. Interrompia-o para sintonizar de novo
o mar naquele objecto mágico. Sempre que o fazia, uma sombra cobria-lhe o rosto
e uma dor varava-lhe o peito. Também no dia em que, irreconhecível, Ulisses
desembarcou em Ítaca, ela levou a concha ao ouvido. O que escutou deu-lhe tal
alegria que deixou que o objecto se desprendesse das mãos e se estilhaçasse nas duras
lajes do palácio. O mar deixara de lhe falar.
Imóveis, as jogadoras descansam dos acasos do jogo. Olham-se e não falam. Guardam os segredos no cofre-forte da discrição. O que sabem só a cada uma diz respeito. Esperam apenas que o tempo passe e se tornam pedra, estátuas frias na turbulência do tempo.
Piso as folhas caídas da árvore do Outono, oiço-as ranger sob o peso dos meus pés e caminho desvalido como um eremita perdido no crepúsculo da grande cidade. Sigo o caminho que não leva a lado nenhum. Sou cego e guio-me a mim mesmo e espero, no ventre dessa cegueira, a luz que me há-de resgatar do império da noite.
Hiroshi Sugitomo, Baltic Sea, near Rügen, Germany, 1996
Olhamos a vastidão do mar, o murmúrio do vento rente às aguas, a cor indecifrável que fere a memória. Tudo o que é grande reflecte o silêncio dos céus e aguarda o coração que lhe desvende o mais secreto dos segredos.
William Henry Fox Talbot, A Scene in a Library, 1844
Parecem esquecidos, mas estão apenas à tua espera. Aguardam, pacientes e fiéis, que a solidão te chame para eles e, em silêncio, descubras o que te têm para dizer.
Canticles
of Ecstasy, música de Hildegaard von Bingen. A luz que se desprende
daquelas vozes ilumina a noite e um murmúrio clama que a Idade Média não pode
ter sido um tempo de trevas, se havia quem cantasse assim.
Deixo que as vozes me arrebatem, enquanto o coração sossega e descansa do
calvário do dia.