sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Meditação Breve (94) Morte

Vivian Maier, Chicago, IL 1962

Não há como a morte, mesmo que apenas aludida, para que os vivos se confrontem e interroguem sobre o sentido da vida. Isso, porém, leva-os a esquecer a interrogação essencial: qual o sentido da morte?

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Haikai do Viandante (364)

Frederic Edwin Church, Cruz en un paisaje agreste, 1857

A perdida cruz
cresce dentro da paisagem.
Luz e vendaval.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Impressões 16. Naufrágio

Henri Edmond Delacroix Cross, O Naufrágio, 1907

Imperceptível, trémulo, envolto na obscuridade, o naufrágio aproxima-se de nós, toma-nos por dentro e faz descarrilar a embarcação onde o espírito, inquieto e temeroso, se transporta. Não há viagem sem naufrágio.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Micronarrativa (10) A veladora

Antonio Beato, Karnak Luxor, 1862

Convidei-a a vir no barco. Era a sua última oportunidade, disse-lhe. Ela não o desmentiu. Respondeu apenas que o meu convite era inaceitável. O seu lugar, sublinhou sem tristeza, era nos santuários. Há mais de quatro milénios que velava por eles. Não seria o amor que a desviaria da missão, acrescentou e desapareceu entre as ruínas.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Poesia do Viandante (702)

Agnes Martin - Falling Blue (1963)

702. um azul cai no outono

um azul cai no outono
desses olhos
um azul árduo
desliza
dos lódãos
e dos ciprestes
ondula nas oliveiras
sopra e sussurra
no hibisco da infância

(23/12/2016)

domingo, 20 de janeiro de 2019

As bordadeiras

Kusakabe Kinbei, Parasol embroiderers in Japan, ca 1890

O trabalho lento, mas minucioso, dava-lhes um lugar no mundo.  O que era desprovido de graça, ao sair das suas mãos, parecia ter sido tocado por um deus. As ruas eram assim mais belas devido ao seu trabalho e não havia mulher que não se sentisse orgulhosa de ostentar um guarda-sol por elas bordado. Um dia, saíram da oficina e não tornaram a aparecer. Circulam versões para todos os gostos. A mais verosímil conta que, no fim de uma rua, entraram por uma porta e não mais foram vistas. Dias depois, a polícia instigada pelos patrões foi procurá-las. Arrombou a porta e quando se preparava para entrar descobriu que nada havia para onde ir. Além dela, estava, absurdo e ameaçador, o vazio absoluto.

sábado, 19 de janeiro de 2019

Haikai do Viandante (363)

Aureliano de Beruete y Moret, El Manzanares

A água que corre
lava a solidão do dia.
Áspero Inverno.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Meditação Breve (93) Territórios

Wolfgang Suschitzky, Democracy, 1961

Onde penetra a contagem e o cálculo, esse campo de alarido e luta, nada de essencial se passa. Tudo o que é decisivo se furta ao jogo das maiorias e das minorias e permanece reservado e em silêncio num território só a alguns acessível.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Micronarrativa (9) A carta

Hans Baumgartner, Ferien am Canal du Midi. France, 1949

Sentar-me perto da água e escrever. A anotação de uma memória? Um poema movido pela paisagem? Uma crónica das aventuras em férias? Não. Escrever uma longa carta com tudo o que hei-de querer saber quando chegar a casa e a abrir.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Poesia do Viandante (701)

Agnes Martin - Piedra gris II (1961)

701. o vibrato da estátua

o vibrato da estátua
lavrado na luz
treme tomado
pelo pavor
do vento
se a neve cai
na palidez da pedra

(23/12/2016)

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Pintura e haikus (6)

Fernando Lerín, sin título, 1985

Paisagens azuis
crescem na luz do Inverno.
Terra, mar e céu.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Meditação Breve (92) Felicidade

Cas Oorthuys, Typical Dutch Scenery, 1950s

Tudo se inclina para uma suave melancolia. O dia passa calmo, os homens sentam-se tranquilos, a terra e a água casam-se sem tumulto e o próprio amor desliza rente às emoções, sem que os sentimentos borbulhem ou o desejo se exteriorize em categóricos imperativos.

domingo, 13 de janeiro de 2019

Subida aos céus

Eric Enstorm, Gracia. Bovey, Minnesota, 1918

Vindo da rua, sentou-se. Durante alguns minutos, leu, com compunção, uma das epístolas do apóstolo Paulo. Fazia-o sempre antes das refeições. Paulo, acreditava ele não sem fundamento, velava pela sua frugalidade. Depois pousou, com mansidão, os óculos sobre o livro sagrado. Com o mesmo espírito contrito, comeu a sopa e partiu o pão. Fraccionado este, elevou-o ao alto e murmurou uma breve oração. Colocou-o na boca, como se fosse o último pedaço de pão que comeria. De seguida, com os cotovelos apoiados na mesa, cruzou os dedos e encostou nas mãos a cabeça. Quem o visse diria que estava em meditação tão profunda que o espírito saíra do corpo. Foi assim que se elevou aos céus.

sábado, 12 de janeiro de 2019

Haikai urbano (43)

Fred Lyon, A Walk in the Fog, 1949

Névoa sobre névoa.
Uma família passeia
presa à solidão.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Poesia do Viandante (700)

Agnes Martin - La rosa (1964)

700. a rosa não é uma rosa

a rosa não é uma rosa
mas um paradoxo
de folhas
no rio da razão
floresce sem florescer
rumina sem rumor
no calor do campo
no amor da roseira

(23/12/2016)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Micronarrativa (8) Anjos

Jean Dieuzaide, Turquie, toit d'une maison. Terrasse de Kayadibi,1954

Quando menos se espera, damos com anjos a espreitarem-nos dos mais inesperados lugares. Uma fresta, uma porta entreaberta, uma janela a ninguém acessível. Voltamo-nos, rapidamente, e lá estão eles com os seus olhos espantados e o coração em ânsia.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Pintura e haikus (5)

Pierre-Albert Marquet, Cielo encapotado en Hendaya, 1926

Um jogo de cores
separa céu, mar e terra.
Fantasia e mistério.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Meditação Breve (91) Passado

André Kertész, Place Gambetta, Paris, 1929

Uma velha praça, um carro que se desvanece, o transeunte protegido pelo guarda-chuva, os candeeiros da iluminação pública alinhados como numa parada militar. É tão perfeito o passado que o coração, ao avistá-lo, chega a doer.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Impressões 15. Abandono

Will Ellis, Abandoned NYC

O abandono é uma casa que acolhe a voz de muitas dores o pulsar do sangue levado pelo desalento da vida.

domingo, 6 de janeiro de 2019

Poesia do Viandante (699)

Agnes Martin, Flor al viento, 1963

699. flores flutuam

flores flutuam
ao vento
refluem contra
o muro do poema
deixam cair
perfumes de pólen
no sal da servidão

(23/12/2016)

sábado, 5 de janeiro de 2019

Haikai urbano (42)

Ara Güler, Paar in Zeyrek, 1960

Caída dos céus,
desliza sobre a cidade.
Neve, branca neve.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O livro da vida

Florian Schmidt, Turn The Page

Sim, ela enlouqueceu. Temo, pode crer, que a situação seja irreversível. Um dia, sentou-se e abriu um livro que eu nunca vira. Era o livro da sua vida, exclamou alegre. Então, começou a ler e a virar as páginas. Na segunda, exclamou: que estranho! Na terceira, o assombro aumento na sua face. Quando virou a quarta, havia já um ricto de temor na testa. Depois, começou a virá-las cada vez mais rapidamente e dizia: não, não pode ser. Gritava, chegou a arrancar alguma folhas e a rasgá-las Então, já em completo desespero, atirou-me o livro. Eu abri-o e em todas as páginas estava escrito a mesma coisa. Era essa a sua vida.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Impressões 14. Apocalipse

Riccardo Schweizer, Apocalipse, 1957

O Apocalipse não é uma consumação de um fim definitivo do mundo, mas a revelação da possibilidade de um começo. Todo o Apocalipse traz em seu seio um Génesis.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Micronarrativa (7) Geisha

Thomas Hoepker, A geisha in traditional oiran dress in a 17th century tea house. Kyoto, 1977

Sentada, ela espera a hora de se elevar. A luz toca-a e ilumina-a para que o segredo a envolva e, para os olhos ávidos, se torne opaca. A sombra espera-a para a conduzir à casa da noite.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Poesia do Viandante (698)

Agnes Martin, Esta lluvia, 1960

698. chuvas de dezembro

chuvas de dezembro
envoltas
no desvão da dor
caem no terraço
do olvido
e abrem os dedos
da solidão
na fronteira da fantasia

(23/12/2016)

domingo, 30 de dezembro de 2018

Micronarrativa (6) A carta

Alexey Titarenko, Old woman, St. Petersburg, Russia, 1999

Estou tão cansada que nem forças tenho para desdobrar o papel e ler a carta. O que poderá ela dizer que eu não saiba já. As palavras que escreveste pesam como chumbo e o meu corpo cansado mais do que para a tua memória inclina-se para a terra.

sábado, 29 de dezembro de 2018

No bosque

Carlos Morago, Arboleda, 1998

Um bosque é o suficiente para alimentar o romantismo que nos habita. Desesperado, talvez por um desgosto de amor ou por um desastre financeiro, ter-se-ia suicidado entre as árvores. O local não deixa de ser convidativo aos grandes gestos, mas a verdade é bem diferente. Não se lhe conheciam paixões ou interesses. Entrou no bosque, é certo, mas o seu corpo nunca foi encontrado. A versão mais razoável é a que conta um amigo que o acompanhou. Chegado à clareira, ao anoitecer, disse-lhe. É aqui que vou ficar. Logo o corpo começou a sofrer uma estranha metamorfose. Quando a luz da manhã chegou, ele era aquela árvore que ali vê. A mais alta e imponente de todas. O resto são fantasias.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Pintura e haikus (4)

Arnold Böcklin, Château en ruine, 1847

Murmúrios de luz
sobre montes e ruínas.
Sombras do crepúsculo.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Impressões 13. Passam

Sergio Larrain - Magnum Photos, Bolívia, Potosi, 1957

Passam e trazem com elas a morada do silêncio, um olhar de inquirição, uma sombra sobre o corpo. Passam e são o dia e a noite, o princípio de esperança e o fundo desespero. Passam e acordam na memória o rasto de uma nuvem esquecida.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Poesia do Viandante (697)

Frantisek Kupka - Discos de Newton (1911-12)

697. discos de newton

discos de newton
sombreiam o som
do arco-íris
soltam solstícios
na casa
do sol
esculpem
lápides de luz
ao soltarem-se da sombra

(22/12/2016)