segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Impressões 4. Pequenez

Andreas Feininger, Bernini’s Peristyle, St. Peter’s Square, approx. 1960

Não são as colunas que, no seu desejo de se elevarem, são desmesuradas. És tu que, incapaz de te ergueres, és pequeno, demasiado pequeno para o mundo que te cabe suportar.

domingo, 23 de setembro de 2018

Haikai urbano (37)

Armando Salas Portugal, Torres de Satélite, c. 1958

Cidade dos sonhos,
Babel de ferro e betão.
Sombra sem história.

sábado, 22 de setembro de 2018

Meditação breve (83) Segredos

Julia Margaret Cameron, Enid, 1874

Deve ser sempre com recato e temor que se abre a porta de um velho armário. Nunca se sabe que segredos esquecidos o esquivo coração ali guarda.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Impressões 3. Separação

Gaston Xhardez, La fenêtre volante, Prémonition à un monde futur, ca 1957-1958

O que separa o homem do céu? A ordenada opacidade dos vidros e a terna tentação do fruto proibido. Sempre que, inquieto e ávido, quer abrir a janela é a maçã que se prende ao desvario dos dedos.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Poesia do Viandante (687)

Elmer Bischoff, # 104, 1987

687. a harpa da incerteza

a harpa da incerteza
ressoa no mar
da memória
incêndio e sangue
incenso e saudade
as cordas dedilhadas
na asa do corvo
na fenda da fantasia

(21/12/2016)

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Haikai do Viandante (360)

Pere Ysern i Alié, Bois de Boulogne, 1921

Árvores de Outono
inclinam-se para o lago.
Cisnes, luz e água.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Meditação breve (82) Sombra

Thomaz Farkas, São Paulo, 1950

Sombra não é aquilo que um corpo, batido pela luz, projecta. Sombra é o lugar de onde os corpos nascem e para onde voltam depois de a luz, por um instante, os ter tocado.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Impressões 2. A cadeira vazia

Walde Huth, c. 1950-51

A cadeira vazia espera-te. E sentado poderás ouvir o murmúrio das águas, o repicar dos sinos, a cavalgada do vento sobre a copa das árvores, se um vendaval se aproxima e mortas as folhas esvoaçam ao teu redor.

domingo, 16 de setembro de 2018

Impressões 1. Esses lugares

Max Baur, Park Sanssouci, 1930s

Esses lugares onde o silêncio cresce, desenha paisagens de névoa e, de súbito, desaba sobre o segredo dos ciprestes. Esses lugares onde a solidão se abre para o mistério da sombra e solícita soletra o teu nome.

sábado, 15 de setembro de 2018

Poesia do Viandante (686)

Elmer Bischoff, # 50, 1980

686. a cólera dos deuses

a cólera dos deuses
no tumulto
do sentimento
o vulcão expele
a lava
da angústia
na quimera coroada
pelo ardor da alegria

(21/12/2016)

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Haikai do Viandante (359)

William Henry Fox Talbot, A Fruit Piece, 1845

Naturezas mortas
descansam sobre a mesa.
Frutos e silêncio.

domingo, 9 de setembro de 2018

Meditação breve (81) Passado

Roberto Rive, House of Marco Olconio, Pompeii, 1860s

Quando nos deparamos com aquilo a que se chama vestígios do passado nunca reparamos no equívoco que é ver nesses objectos algo que pertence ao passado. Eles são uma pura presença, um presente e dizem alguma coisa sobre nós e nada sobre aquilo que passou. É sobre este equívoco que se constrói uma disciplina a que se dá o nome de História, essa colecção de preconceitos com que disfarçamos o presente na imaginação de um passado que nunca existiu.

sábado, 8 de setembro de 2018

Naufrágios

Francis James Mortimor, Wreck of sailing ship Arden Craig, 1911

Quantas vezes nos salvamos de um naufrágio e, pensando estar a salvo, nos vemos náufragos sem colete de salvação nem barco salva-vidas? Há os naufrágios que nos acontecem e há o naufrágio que transportamos dentro de nós. Dos primeiro, por vezes, ainda podemos fugir. Do último, há que enfrentá-lo, pois ninguém pode fugir de si mesmo, do naufrágio que transporte em si. Aí começa a sabedoria.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Meditação breve (80) Fé

Ed van der Elsken, Prinsenhofsteeg, Amsterdam, 1949

A fé, essa que fé que leva um ser humano a ajoelhar perante o que o transcende, não nasce de um dogma ou de uma autoridade mas do espanto que sempre está presente no encantamento.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Poesia do Viandante (685)

Elmer Bischoff - # 1 (1974)

685. nas grandes planicies

nas grandes planícies
de mármore
pássaros de erva
poisam
azuis e aluados
no  lacre da primavera

(21/12/2016)

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Haikai do Viandante (358)

John Constable, Cloud Study, 1822

Nuvens são segredos
de sombra, sol e silêncio.
Vertigem e vento.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

A ruína

Deborah Turbeville, Vera Abrusova, Stroganov Palace, 1996

Sim, conheço-a muito bem. Pelo menos, o suficiente para trocar com ela, de quando em quando, algumas palavras. De circunstância? Não, ela nunca fala para preencher o vazio ou para matar a solidão. Vive só, claro, mas não é uma solitária. Quando herdou o palácio, ele já estava em ruínas. Um dia, disse-me que tinha hesitado muito sobre o destino a dar ao destroço que tinha recebido. Quando o filho, o único que tinha, morreu, abandonou o marido, o mundo, e veio viver para ali. Disse-me que, a partir de então, aquele seria o seu elemento natural. Também ela era uma ruína sem futuro. Pálida, sorriu, como se pedisse desculpa, e entrou pela porta decrépita que não procurou fechar.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Biografias 16. O homem do acordeão

Edith Tudor-Hart, London, c.1931

Lentamente, quase como se o tempo não existisse, o homem percorre as ruas. Não olho para o que se passa à sua volta, apenas faz deslizar os dedos e escuta a música que ele mesmo descobre no fundo da sua sombria solidão.

domingo, 2 de setembro de 2018

Meditação breve (79) Ocaso

Jaime Burguillos, Ocaso, 1976

No sol poente não paira apenas a ameaça das trevas a caírem inexoráveis sobre o mundo. Há ainda a promessa de um novo dia, como se tudo estivesse submetido ao império da morte e ressurreição, como se todo o ocaso fosse já o prenúncio da aurora.

sábado, 1 de setembro de 2018

Poesia do Viandante (684)

Wassily Kandinsky - Curva Dominante (1936)

684. curva dominante

curva dominante
crua e cruel
a folha da tarde
na casa de adobe
uma réstia de sol
no solstício
separa o meu
do teu inverno

(20/12/2016)

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Haikai urbano (36)

Ed van der Elsken, Café “Chez Moineau”, Paris, 1954

Sombra e solidão.
Ele dorme, ela lê.
Vida de café.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Chegar a casa

Cecil Beaton, Dorian Leigh, Vogue, 1950

Apoiou os braços e nestes, a cabeça. Estava exausta. Tinha vindo de longe, de tão longe que esquecera o sítio de onde partira. Talvez fosse de uma casa na montanha ou de uma cidade perto do oceano. Todas as suas memórias tinham começado a dissipar-se. Era como se uma pedra dura, de repente, se desfizesse em grãos de areia microscópicos, e estes, quase um fluido, escorressem entre os dedos. Assim, perdia ela os pormenores da sua vida, o nome dos pais, a face dos homens que amara, o lugar onde nascera. Vívido, apenas o buraco negro por onde entrara e a luz que agora a iluminava. Uma voz sussurrou-lhe: chegaste a casa.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Biografias 15. A rapariga que sorri


Ela cruza os dedos, respira fundo e sorri. E no sorriso habita o silêncio que se esconde no fundo do seu coração. Esperam sempre qualquer coisa de mim, pensa, mas nada mais tenho a dar do que o meu sorriso. Pega numa garrafa, abre-a em silêncio e sorri.

Fotografia: Sergio Larrain-Magnum, Limón Soda, Valparaíso.

domingo, 19 de agosto de 2018

Poemas do Viandante (683)

Frantisek Kupka, Trazos negros enroscados, 1911-12

683. espirais volutas e fogo

espirais volutas e fogo
o suão vibra
no vitral
do meio-dia
na rosa-dos-ventos
nas asas da borboleta
coberta de sol
coberta de míngua

(20/12/2016)

sábado, 18 de agosto de 2018

Meditação breve (78) Mistério


O prazer que extraímos do mistério reside na derrota da razão. Não existe apenas a satisfação do triunfo, quando um enigma é decifrado. Aquilo que resiste aos avanços do nosso entendimento também provoca não pequena volúpia.

Pintura: Alphonse Osbert, El misterio de la noche, 1897

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Haikai do Viandante (357)


Nuvens sobre o lago.
Sombras deslizam nas águas.
Promessas de Outono.

Pintura: Nikolay Dubovskoy, Calm, 1890

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Biografias 14. A mulher do último café

Charles Hewitt, Night Time Coffee, London, 1952

Era sempre a última cliente. Chegava como uma sombra. Pedia um café, bebia-o em silêncio, enquanto olhava os jogos de luz que se desprendiam da iluminação pública. Passados minutos, sem que dissesse uma palavra, tirava umas moedas de uma bolsa velha e gasta e depositava-as distraída sobre o balcão. Então, partia num passo hesitante, como se não soubesse o caminho até que se fundia na escuridão da noite.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

O deserto

Jean Dieuzaide, Sahara, vue aérienne, 1965

O deserto cresce. É tão tentador citar: 'O deserto cresce, ai daquele que oculta desertos.' Ninguém tem o poder de ocultar um deserto, nem tão pouco o deserto que traz dentro de si. Antigamente, havia quem fosse para o deserto para estar mais próximo de Deus ou para combater o demónio. Uma arena para grandes combates metafísicos. Aquele que traz o deserto em si, esse não precisa de nenhum deserto material. Senta-se na sua solidão e espera a hora em que o demónio se entrega nas suas mãos ou Deus, envolto numa sombra, se senta ao seu lado. O deserto cresce.

terça-feira, 19 de junho de 2018

Poemas do Viandante (682)

Amadeo de Souza Cardoso - Quadro (1912)

682. prímulas e margaridas

prímulas e margaridas
amadurecem
na paisagem pisada
pela luz venal
do verbo
cantam
perdidas no sonho
do jardineiro
preso à tesoura da morte

(20/12/2016)

sexta-feira, 8 de junho de 2018

A estátua

Nelly’s, Girl from Ipati, Greece, ca. 1930

Se o acontecimento é extraordinário, as razões que a levaram aquela decisão são misteriosas. Não lhe faltavam os dons que atrairiam sobre ela as maiores felicidades. Bela, poderia escolher o homem que quisesse e a vida que mais desejasse. Tinha uma índole jovial e não lhe faltavam amizades. Tão pouco nascera num lar sem fortuna. Quando viu, pela primeira vez, a estátua de pedra, gritou. Depois, silenciou-se. Uma noite, viram-na colocar-se ao lado da estátua, imitando-lhe a pose. Na manhã seguinte, continuava lá. Enlouquecera, pensaram. Quando no dia seguinte a avistaram, alguém foi ter com ela. Tocou-lhe. A sua carne, porém, era um mármore frio e pálido.