segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Olhar

Fritz Henle - Portrait between leaves (1946)

Olhar é um exercício que exige uma longa, e nunca terminada, aprendizagem. É uma das mais difíceis disciplinas do espírito humano. Podemos deter-nos perante esta fotografia e perguntar: o que se vê nela? Há quem veja um rosto de mulher entre folhas. Há quem veja o acolhimento que a natureza dispensa aos seres humanos. Há quem veja a secreta identidade entre a mulher e as folhas, o reconhecimento em que uma e outras se descobrem irmanadas.

domingo, 8 de outubro de 2017

Máscara

György Kepes - Juliet, 1937

Nesta fotografia de György Kepes, o que perturba o espectador não é a máscara que, na sua complexidade, cai sobre o rosto de Juliet. Perturbante é a severidade dos lábios que são dados a ver. É esta perturbação que leva à questão crucial: o que oculta uma máscara? Ingenuamente, pensa-se que é um rosto. Olhando aqueles lábios, porém, percebe-se que toda a máscara oculta o espírito, que ela faz parte da luta para que invisível não se torna, por algum descuido, visível.

sábado, 7 de outubro de 2017

Poemas do Viandante (653)

Franz Marc - Fighting Forms (1914)

653. formas fluidas flutuam

formas fluidas lutam
na arena da tela
urram e rugem
vozeiam
no logro
                da lástima
no calor
                da contenda
no dolorido
                da dor

(14/12/2016)

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Uma dura negociação

Heinz Held - Karneval in Köln, Köln, Germany, Date Unknown

Há nesta fotografia uma captação do espírito de Carnaval absolutamente surpreendente. Habituados à exuberância do Carnaval brasileiro, ao seu falso erotismo, à sua aparente ruptura com a ordem, há muito deixámos de perceber a essência dessa embriaguez do espírito. E ela está toda nesta fotografia. A contenção irónica das faces deixam já entrever um fundo bem mais desconcertante, inusitado e perigoso. Na marcha dos foliões, esse fundo manifesta-se e reflui sobre si mesmo, hesita entre o caos que anuncia e a ordem onde acabará por ser reabsorvido. O Carnaval, na verdade, não é mais do que uma dura negociação entre a face dionisíaca e a face apolínea do espírito.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Meditação breve (50) - Luz e trevas

René Burri - Tower by Luis Barragán (pictured in doorway), Mexico City. 1969

O fascínio provocado pelas trevas é tão grande quanto o provocado pela luz. Se o caminho das trevas apenas pode ser tomado sob o efeito desse fascínio, o caminho da luz impõe uma longa purificação da consciência fascinada.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Meditação breve (49) - Destruições

Salvador Soria - Integración de lo destruido 91-RR (1991)

Pensa-se a vida espiritual como uma existência dispensada do conflito e da destruição que lhe é subsequente. Puro equívoco. O caminho do espírito é um exercício de contínuas destruições. Destruição das veleidades pessoais, da consideração de si, das ilusões do desejo. E a cada destruição, o espírito integra, como a mais profunda riqueza, os destroços que semeou na sua caminhada.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Haikai do Viandante (338)

Pierre TAL COAT - Déchiré profond, 1972

Um golpe profundo
no fundo do corpo morto.
Um grito ecoa.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Poemas do Viandante (652)

Georgia O'keeffe - Evening Star (1916)

652. tardia estrela da tarde

tardia estrela da tarde
evening star
of oblivion
estrelada in my heart
i can’t remember
your light
na luz luxuriante
do pulsar
do meu esquecimento

(14/12/2016)

domingo, 1 de outubro de 2017

Haikai urbano (21)

Bettman Corbis, The Empire State Building, 1947

Do céu avistam-se
rugosas ruas da cidade.
Os anjos aguardam.

sábado, 30 de setembro de 2017

A porta aberta

Tal-Coat - Faille (1948-50)

O momento decisivo está na falha, na ruptura que dissolve a confiança em si, na quebra que estilhaça a ordem do mundo. Essa é a hora em que inabitual se imiscui na vida, a interpela e deixa o sujeito tremente e temeroso perante a porta aberta.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O jogo do espírito

Egon Schiele - ¡La puerta a lo abierto! (1912)

A vida do espírito é marcada por um jogo, persistente e duro, entre abertura e clausura. Por vezes, há quem se refugie na clausura com a ilusão de que aí encontrará a clareira, o espaço aberto por onde caminhará. Outros optam pelo espaço público, essa clareira onde os homens se dão a ver uns aos outros, como estratégia de oclusão, de fechamento a si e aos outros. Ora a vida do espírito, o jogo que ele entretece consigo mesmo, está muito para além da abertura e da clausura, reside no enigma do espaço sem espaço num tempo sem tempo.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Haikai do Viandante (337)

Zao Wou-Ki - 10-2-76

Paisagens de gelo
na grandeza do granito.
Rude rumor d'água.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Poemas do Viandante (651)

Georgia O'keeffe - Era azul y verde (1960)

651. ondas de azul

ondas de azul
e verde
traçam rios
de erva
e água
na vertigem
do céu
a cândida candura
das nuvens

(14/12/2016)

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Ex nihilo

Kenneth Noland - Ex-Nihilio, 1958

Ex nihilo não se refere a esse nada de onde o mundo, através da criação divina, teria sido tirado, mas ao nada que a cada momento nos permeia e ao qual nos subtraímos por um esforço contínuo. Somos nós, que em temor e tremor, nos arrancamos ex nihilo até que esse nada nos vença ou, raras vezes, descubramos que esse nada somos nós.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Meditação breve (48) - Procissões

Paula Modersohn-Becker - Procession of Wailing Women (1902c)

A mágoa, numa cultura como a que se desenvolveu no Ocidente, é um assunto íntimo e ao qual mesmo os que nos são próximos devem ser poupados. A procissão, quase esquecida nas práticas sociais, tem, nesta situação, um papel central. Ela é, na verdade, um dispositivo para tornar pública a dor que corrói a intimidade e, nessa publicidade, a dissolver. 

domingo, 24 de setembro de 2017

Meditação breve (48) - Devaneio

Francis Wu - The Dreamer

No devaneio do sonhador em estado de vigília, não é este que se evade para outro mundo. É um mundo que lhe é estranho que o invade e, como num rapto, se apodera dele.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Haikai do Viandante (336)

Gustave Courbet - Le Château de Chilon, 1874

Montanhas e águas
sobre o mistério da tarde.
Silêncio no lago.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Poemas do Viandante (650)

Frantisek Kupka - Ensayo, robustez (1920)

650. ensaio um passo redentor

ensaio um passo redentor
na robustez
da eternidade
e oiço o canto
das estrelas
a poisar no jardim
que estremece
sob o pálido pavor
dos rubros pés de deus

(14/12/2016)

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Meditação breve (47) - Contemplativos

Charles Gatewood

O mais surpreendente naqueles que são contemplativos não é o facto de estarem arredados da acção e dos negócios humanos.  O que surpreende é a sua contemplação balançar sempre entre a aparência da indiferença e a prontidão com que respondem a uma solicitação de quem deles se aproxima.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Água que corre

Paula Modersohn-Becker - Landscape with Marsh Channel (1899 )

Como o fogo, também a água que corre exerce um grande fascínio sobre o espírito do homem. Ficar a ver passar as águas de um rio conduz os homens a uma experiência muito arcaica. Não é a antiguidade da experiência, porém, que a torna fascinante, mas o jogo de espelhos que ela opera. O espírito olha o fluir da água e reconhece-se a si mesmo. O rio de Heraclito é já uma solidificação dessa experiência, uma tentativa de racionalizar a experiência da fluidez do próprio espírito humano, mas este, como a água, recusa-se ao estado sólido e logo escapa do contorno da figura que o prende e parte em busca de si mesmo, para além das múltiplas figuras que vai tomando.

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

As moradas do espírito

Walker Evans - Apartment Building Façade with Horse-Drawn Carriage, Sixth Avenue, New York, 1934

Múltiplas são as moradas que aguardam o espírito e em todas elas ele demorará o tempo de reconhecer que essa não é a sua morada e que uma outra o espera, num caminhar sem fim nem quietação.

domingo, 17 de setembro de 2017

O caminho sem fim

Alexej Titarenko - St. Petersburg, 1998

O exercício da metamorfose é a natureza do espírito. Quando perde a elasticidade e se petrifica, morre. É uma estátua de sal. Se, como Lázaro, for ressuscitado, espera-o o caminho infinito da transformação. Nenhuma casa é a sua casa, nenhum porto o abriga, nenhuma figura é a sua figura. O lugar onde chega é já aquele de onde deve partir. Além é sempre aquilo que o espera.

sábado, 16 de setembro de 2017

Poemas do Viandante (649)

Frantisek Kupka - Encuentro (1919)

649. o centro do silêncio rosna

o centro do silêncio rosna
se encontra
no orvalho
uma mão de caruma
e ladra
como um ladrão
sabe ladrar
à porta de pedra
desfeita
no feitiço da linguagem

(13/12/2016)

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Haikai do Viandante (335)

Jan Sudek

Os ramos despidos
na sombra do meu olhar.
Espero o inverno.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Meditação breve (46) - Rede

Albert Renger-Patzsch - Crab fisherman (1927 )

Transportamos a rede na qual, incrédulos, nos enrolamos.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Máscaras e armaduras

Charles Clifford - The Armor of Philip III, 1866

Fala-se muitas vezes de máscaras sociais, estando estas ligadas aos diferentes papéis que os seres humanos desempenham. São um dos artefactos cénicos que são mobilizados na vida social. Nelas está sempre presente a dimensão do disfarce, o qual nos permite encarar de forma menos traumática as interacções que são exigidas nos espaços públicos e privados em que vivemos. A questão é que a máscara, sem que o pensemos, transforma-se muito cedo em armadura. Um dispositivo de defesa, de protecção, mas também de ataque. O que dá solidez às máscaras sociais é o facto de elas serem armaduras disfarçadas, armaduras mascaradas. Proteger-nos do perigo e conquistar vantagens, eis o programa da nossa animalidade. Para chegar à vida do espírito não basta tentar arrancar o disfarce, a máscara, é preciso perceber o que se esconde nele. E o que se esconde não é um suposto verdadeiro ser, mas a armadura do combatente, o sinal do seu desejo de conflito.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Meditação breve (45) - Fogos de artifício

Hernando Viñes - Feux d'artifice (1954)

A generalidade das actividades, mesmo as mais sérias, a que os homens se entregam não passam de fogos de artifício. Iluminam-nos por um instante para que eles esqueçam da escuridão que os envolve e os habita. 

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Poemas do Viandante (648)

Wassily Kandinsky - À volta da linha (1943)

648. à volta da linha

à volta da linha
figuras
de mosto fermentam
na cripta
da memória
à volta da linha
a lepra do dia
borda-se
em madeira e
vésperas de cal

(13/12/2016)

domingo, 10 de setembro de 2017

Haikai urbano (20)

Edward Hopper - La ciudad (1927)

Vultos pela rua
passam no frio do silêncio.
Um grito ao meio-dia.

sábado, 9 de setembro de 2017

Meditação breve (44) - Concórdia

James Brooks - Concord (1975)

A concórdia não é a ausência de conflito, uma harmonia nascida da inexistência de oposições. A concórdia é o resultado do exercício de aproximação que transforma os outros, irredutíveis na sua materialidade, em próximos pelo espírito. Se o corpo separa os homens e os abre ao conflito, o espírito, ao torná-los próximos apesar da discordância e do conflito, abre-lhes o difícil caminho da concórdia.