sábado, 20 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (527)

Alfred Stevens - The Bath (1867)

527. No murmúrio

No murmúrio
dos teus olhos
há um poço
de água funda,
onde deixei cair
a rosa que colhi
nas margens do rio
que corre
no teu sangue.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Paisagem espiritual

João Hogan - sem título (1972)

Imagina-se, demasiadas vezes, a vida do espírito em analogia com paisagens florescentes, como se ela fosse um passeio sentimental destinado a almas doces e delicadas. Quantas vezes, porém, a paisagem espiritual é despida, crua, rugosa, como se toda a vida tivesse sido evacuada e apenas restasse um frio petrificado sob o vento, sob esse vento que corre onde quer.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (526)

Artur Bual - sem título (1986)

526. De súbito, cavalos

De súbito, cavalos
irrompem na tela.
E a sua sombra
negra galopa
na planície verde
banhada pelo fogo
dos teus olhos.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A tua casa

Álvaro Lapa - s/título (s/d)

O que resta das antigas memórias, das grandes casas, das avenidas largas, do fluxo das pessoas perdidas pela cidade? Passados tantos anos, filho pródigo, volto para casa, e já não há casa, nem rua, nem pessoas. Olho de longe e vejo a ruína que cresceu no solo e tomou conta do mundo, daquele mundo onde vi a luz pela primeira vez. Sento-me no chão e fecho os olhos. O silêncio rodeia-me, abre sulcos dentro de mim, rasga-me a carne. Um fio de sangue corre da minha boca, para logo coagular. Saboreio-o e oiço o rugir da terra. A cidade, as ruínas que restam, avança sobre mim. Imóvel e silencioso, abro os olhos e espero que caia a primeira pedra. Eis a tua casa, oiço.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Haikai do Viandante (272)

Ando Hiroshige - A Vilage in the Snow (1831-34)

montanhas ao longe
cobrem de inverno a aldeia
neve sobre a terra

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O duelo

Albert Bloch - Duel (1912)

Em tempos, o instituto do duelo servia para lavar a honra. A lei acabou por triunfar sobre a honra. A verdade, porém, é que não eliminou o duelo. Este retirou-se do exterior e fixou-se dentro de cada um. O espírito confronta-se consigo mesmo e desse duelo sairá o caminho que a vida deve seguir.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Conversão do olhar

Marc Chagall - Sobre a cidade

A cidade dos homens, por maior que seja o interesse que se lhe devote, nunca deixa de ser sentida como limitada e limitante. Nela cruza-se a necessidade da natureza e a convenção social, formando uma férrea irmandade que submete cada um. A vida do espírito é um ir para além da necessidade e da convenção. Seja na arte, na religião ou no amor, o homem eleva-se a uma outra dimensão, onde as leis da natureza e as regras da sociabilidade perdem significação habitual e ganham um novo sentido ao serem olhadas de cima e do exterior. A vida do espírito é uma conversão do olhar.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Da liberdade

Francisco Iturrino - Potros en el campo (1912-14)

Inúmeras vezes se simboliza a liberdade dos homens através da analogia com os animais em plena natureza. Este é um equívoco fundamental. A natureza e a vida dos animais é comandada pela necessidade, pela mais estrita necessidade. A liberdade começa quando, movido pelo espírito, o homem se afasta da manada e limita, tanto quanto pode, a necessidade.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (525)

Henri Le Sidaner - Le Quai (1898)

525. Nas águas

Nas águas
ergue-se 
o silêncio
feito de névoa
e de noites
perdidas
pelo cais.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Do semear e do colher

Kazimir Malevich - A Colheita (1910-11)

Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus. (Eclesiastes 3:1)

Há um tempo para semear e outro para colher, é verdade. O que a vida do espírito, contudo, mostra é que esse tempo não está determinado. Debaixo dos céus, qualquer momento é tempo de sementeira e qualquer momento é hora de colheita, pois o semear e o colher não são já determinados pelos ritmos naturais, mas, como frutos desse vento que sopra onde quer, irrompem de súbito, provenientes de uma outra ordem que não a da necessidade natural e dos ritmos ancestrais da certeza.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Haikai do Viandante (271)

Rockwell Kent - Admiralty Inlet (1922)

neves na montanha
e um rio que corre invernoso
tempo de partir

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Sombras de domingo

Henri Le Sidaner - Dimanche (1898)

Quando chega a Primavera, volto sempre ao mesmo sonho. Deito-me, nas noites de sábado, e o sono vem rapidamente. Depois, depois, não sei como acontece. Estou escondido no bosque, a cidade ao fundo, e vejo desfilar grupos de jovens mulheres. Vêm e vão serenas. Falam baixo, apenas um murmúrio. Esforço-me por as ouvir, mas nunca o consigo. Falam sobre mim, tenho a certeza. Fingem, porém, ignorar-me. Olho-as, olho-as sempre demoradamente. Por fim, escolho uma, nunca a mesma. Escolho aquela a quem vou pedir em casamento. Tomo a decisão e corro para ela. Quando a estou a alcançar, ela sorri-me, como se esperasse por mim. Estende-me a mão e desaparece. Acordo, a luz da manhã entra-me pela janela. É domingo.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

A espera

Marcus Stone  - Waiting (1921)

A espera pode ser uma etapa crucial na viagem. Nem toda a espera, porém, tem em si esse poder de se tornar um elemento central na vida do espírito. Quando a espera é tida como instrumental, um tempo que antecede qualquer realização a vir, nesse momento ela é um obstáculo. É preciso que o viandante aprenda a deter-se na espera e não esperar dela outra coisa senão o que ela é, pois na pura espera já está tudo o que se há-de encontrar.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (524)

Georgia O'Keeffe - Abstracción, rosa blanca n. 2 (1927)

524. Uma onda?

Uma onda?
Um deserto?
Apenas a rosa
branca e lívida
que se abre
para o longe
aqui tão perto.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Sonho e realidade

Max Beckmann - Rêve de París, Colette, Eiffel Tower (1931)

Na história da humanidade o sonho sempre desafiou a argúcia interpretativa dos homens. Antevisão do futuro ou sintoma de conflitos passados, o sonho foi e é motivo para uma recusa do presente. E no entanto ele é uma poderosa manifestação da presença do espírito, de um espírito que se liberta da coacção da lógica formal e dos constrangimentos espácio-temporais. Nessa libertação emerge uma outra realidade, aquela que as estruturas lógicas do entendimento e as formas da sensibilidade ocultam e sonegam na vida quotidiana.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Das redes de comunicação

Ernst Haas - Communication, Nevada (1962)

Vivemos na era das redes e da comunicação. O fascínio de comunicar com o longínquo raramente deixar perceber a dimensão global do processo. E o outro lado do processo é o evitar que o longínquo se torne o próximo. As redes comunicacionais, ao mesmo tempo que estabelecem conexões, estruturam distâncias e aniquilam formas de comunhão. As redes, ao intensificarem a comunicação, aniquilam o espírito que só a comunhão pode fazer nascer.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Nuvens

Edward Weston - Clouds (1936)

As nuvens possuem a particularidade de unir nelas um conjunto de contrários. Umas sugerem um ambiente pesado; outras, a leveza. Umas tornam o horizonte escuro; outras trazem com elas a claridade. Umas são sentidas como ameaçadoras; outras, benfazejas. O que nunca pensamos é que elas são a imagem, a nossa imagem, que o céu nos devolve. Ao olharmos as nuvens, através das metáforas usadas no jogo pueril da sua classificação, é a nós mesmos que encontramos.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Haikai do Viandante (270)

Henri Edmond Cross - Arbres au bord de la mer (1906-7)

água azul e céu
guardam as velhas árvores
silêncio no mar

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Um problema de compreensão

Paul Ackerman - Dis-mois, compreds-tu quelque chose

A preocupação com a compreensão do mundo, com aquilo que se passa fora de nós, funda-se na crença ingénua de que o objecto da compreensão é transparente e acessível em si mesmo. A compreensão do mundo, porém, assenta na compreensão de nós mesmos. Aquilo que compreendemos no mundo exterior não é apenas mediado pela nossa auto-compreensão. É uma projecção dessa mesma auto-compreensão. Aquilo que eu vejo no mundo diz mais sobre mim do que sobre o mundo.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O cair da noite

Giovanni Segantini - Landscape with Horses and Peasant Boy

O rapaz fez entrar os cavalos num pequeno lago para que matassem a sede. Olhou as águas e viu o reflexo dos animais. O sol ainda iluminava o campo, embora uma sombra avançasse rapidamente, galgando a floresta em perseguição do astro que, debilitado, se retirava para além do horizonte, como se um medo antigo o movesse. O rapaz estremeceu. Este jogo entre a luz e a sombra levou-o a procurar, nas águas, o seu reflexo. Via a imagem dos cavalos. Da sua não havia rasto. Perplexo, olhou o horizonte em busca do Sol. Do seu corpo começou a soltar-se um véu pesado e negro, um manto que caiu sobre a terra. Os cavalos diluíram-se, o campo desaparecera, a água secara no pequeno lago. Onde ele chegava, a noite caía.

domingo, 31 de janeiro de 2016

Poemas do Viandante (523)

Giacomo Balla - Abstract Speed - The Car has Passed (1913)

523. Veloz, um carro

Veloz, um carro
passou.
E ao passar,
o céu da manhã
ergueu-se
em ondas de azul
sobre o verde
da floresta.

sábado, 30 de janeiro de 2016

Uma brecha

Hermen Anglada-Camarasa - Interior de Teatro (1898)

O teatro funciona como um espelho da vida social. Como esta, o teatro é uma representação. A vida do espírito, porém, é a insurgência contra a representação. Tudo nela está direccionado para romper com o representar, para que aquilo que é efectivo e real se torne presente. No lugar da representação, a vida do espírito abre uma brecha para a presença.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (269)

Caspar David Friedrich - Cape Arkona at Sunrise (1803)

esta luz dourada
anuncia o amanhecer
fogo no horizonte

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Olhar de cima

Eric Vali - Himalaias

Para que serve uma vida se ela não for a superação de si? Erguer-se acima da pura animalidade. Não se trata de subir na escala social, pois o social é ainda e apenas essa animalidade confortada pela presença especular dos outros animais. Trata-se de subir a montanha, a mais difícil das montanhas, aquela que permite olhar de cima para as ilusões que nos prendem ao animal timorato e vaidoso que somos. A cada um o seu Himalaia.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Do espírito da guerra

Umberto Boccioni - Carga de Lanceiros (1914-15)

Nunca se pensa suficientemente a guerra. Recusamo-nos a ver nela uma manifestação do espírito. Na verdade, porém, a guerra é uma poderosa eclosão do espírito, aquela onde a ligação com a morte se manifesta na sua crueza. Toda a vida espiritual é, na sua essência, um exercício de aprender a morrer e a estar morto, como dizia Platão acerca da filosofia. Isto não legitima a guerra e a morte que ela traz consigo. A guerra manifesta poderosamente a vida espiritual, é certo, mas numa perspectiva patológica. Quando a massa dos homens se recusa aprender a morrer que a vida do espírito traz consigo, essa necessidade reprimida é transferida massivamente para o conflito bélico e incendeia o mundo.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Poemas do Viandante (522)

Benvenuto Benvenuti - Alba in padule (1926)

522. A noite abre-se para

A noite abre-se para
o dia irromper
sobre as águas
do pântano
que paradas
acolhem 
as primeira sombras
trazidas pela ave
que canta
na madrugada.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Aprender a anoitecer

Vincent Van Gogh - Anoitecer (1889)

Aprender a anoitecer. O viandante traz em si demasiada luz e a viagem não é mais que um aprender a fazer noite em si mesmo. Aquele que aprendeu a anoitecer esqueceu-se de si e, abandonando-se ao vento que sopra onde quer, extinguiu a sua luz, para que uma outra Luz possa brilhar nas trevas.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Sete da manhã

Edward Hopper - Sete da manhã (1948)

São sete da manhã. Vejo-o no relógio esquecido na montra. Está ainda tudo fechado. As lojas, as casas, mesmo o dia ainda continua coberto pelo véu da noite. São sete da manhã e ainda não descobri onde estou ou para onde vou. Oiço os meus passos no silêncio. Ao longe passam carros, gente que tem um destino, um lugar que os espera. Volto à montra e olho o relógio. Como há pouco, como há duas ou há três horas, continuam a ser sete da manhã. No vidro, vejo o meu reflexo. A barba por fazer, o cabelo em desalinho, a camisa aberta, as calças rasgadas. Afasto-me horrorizado. Dou uns passos para o lado, para fugir ao reflexo do vidro e olho de viés. Lá está a minha imagem. Presa no vidro, presa nas sete da manhã.

sábado, 23 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (268)

Salvador Dali - Cala Nans adornada de cipreses (1921)

os velhos ciprestes
sombreiam as águas do mar
neptuno adormece

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Poemas para Afrodite (segunda série) 15

Josep Cusachs i Cusachs - Desnudo femenino

15. Deixo os meus dedos

Deixo os meus dedos
correr em teu corpo.
Deixo os meus olhos
morrer em tua pele.
E tudo o que quero
arde nesse ventre,
arde na tua boca
onde sopra o vento.