domingo, 10 de janeiro de 2016

A promessa da repetição

Oskar Laske - River Landscape (1944)

Heraclito constata que não nos podemos banhar duas vezes nas águas do mesmo rio, pois estas estão em constante renovação. Esta constatação de uma impossibilidade esconde, porém, uma pergunta mais decisiva: se pudéssemos, deveríamos querer mergulhar duas vezes nas mesmas águas? Será que a vontade quer a repetição ou o inédito? A viagem do espírito - seja qual for o caminho escolhido, a arte, a religião, o pensamento - é sempre marcada por esta questão. Ela é a luta contra o fascínio que a promessa da repetição, apesar de impossível de cumprir, traz consigo.

sábado, 9 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (266)

Edward Weston - Near Neshanic, New Jersey (1941)

as ervas cresceram
nas terras abandonadas
vento e solidão

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Do valor do caminho

Juan Miró - Ciurana, The Path (1917)

Pensa-se sempre o caminho como aquilo que liga dois pontos, o de partida e o de chegada. Se eliminarmos tanto a partida como a chegada, o caminho, que tinha um mero valor instrumental, toma um valor intrínseco. O caminho vale por si mesmo, pelo facto de ser feito ao caminhar. Independentemente do ponto de onde se partiu e do ponto a que se chegou, se é que se partiu de algum lado e se chegou a outro.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Da ausência e da presença

Hermen Anglada-Camarasa - O palco (1901-02)

O palco é um poderoso símbolo da natureza da vida pública. No palco, os actores representam para uma plateia. Em analogia, também as pessoas, na esfera pública, representam para uma plateia, mais ou menos indefinida. O sentido último deste estar perante os outros é o de transformar aquilo que é uma presença numa representação. Representar significa que o representado não está presente, que se torna ausente. Assim, a vida pública - seja em que grau for - é o processo pelo qual aquele que está presente se torna ausenta. A vida espiritual é o processo contrário: é a viagem que parte da representação e da ausência, que lhe é inerente, para procurar alcançar a pura presença.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Eclipses

Eugène Atget - Eclipse (1911)

Num eclipse, um astro oculta outro. Os eclipses, todavia, não são meros fenómenos astronómicos. Também no homem existem eclipses, quase sempre persistentes. Aí o indivíduo, ansioso da sua subjectividade, acaba por se eclipsar a si mesmo.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (265)

Caspar David Friedrich - Couple Watching the Moon (1824)

sob a luz da lua
ergue-se a velha floresta
olhos noite e sombra

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Da vida como sonho

Arnold Böcklin - A vida é um sonho breve (1888)

A definição metafórica da vida como um sonho breve traz nela a ocultação de uma necessidade que se coloca a todos aqueles a quem esse sonho, ainda que breve, foi dado. Trata-se da necessidade de despertar. Por breve que seja o tempo do sonho, o sonhador recebe também a injunção de despertar do sonho, de abandonar o sono e de chegar ao estado de vigília. A vida espiritual do homem, nas suas múltiplas facetas, não é outra coisa senão esse processo de despertar e de transitar do sono para a vigília. No despertar do espírito, o homem morre, mas morre apenas para aquilo que é um sonho, uma ilusão, ainda por cima breve.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Da tempestade

Léonard Misonne - A Storm Arrive

Também as tempestades fazem o caminho do viandante. Não, não digo que fazem parte do caminho. Digo antes que elas também são o caminho. Fazer parte do caminho seria ainda dizer que se podem evitar, que enfrentá-las ou não está na mais do viajante, no seu arbítrio. Se elas também são o caminho, isso significa que não está nas mãos do viandante vivê-las ou não. Elas impõem-se-lhe, são uma necessidade inexorável, uma disciplina obrigatório num currículo que sendo o seu o ultrapassa infinitamente.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Poemas para Afrodite (segunda série) 13

Jean-Baptiste Camille Corot - L´Odalisque romaine (1843)

13. Reclino-me sobre

Reclino-me sobre
o teu corpo nu.
Toco-te a pele
e deixo os meus
olhos perderem-se
no negro vazio
que se abre em ti.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Combate enigmático

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

A viagem espiritual nada tem de diversão turística. Na verdade, ela não passa de um combate, do mais enigmático dos combates. O viandante luta consigo próprio, com a sombra que nasce do seu desejo de ser alguém, de possuir uma identidade, com a aspiração humana ao reconhecimento. Luta, na verdade, contra uma quimera. Uma quimera, contudo, não deixa de ser um rude e inultrapassável inimigo enquanto não for reconhecido como aquilo que é, uma quimera.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

A palavra do tempo

John Yardley - Bologna Side Street

Estou sentado e vejo o tempo passar. Perde os contornos, desfigura-se, arrasta consigo quem vai, as casas, os carros. O tempo inunda os meus olhos de desfiguração. Um dia foram tão precisos e agora... Bem, agora os meus olhos contam-me outra história do mundo, uma história vista com os olhos do tempo, um fluxo interminável de perda de fronteiras. Aquele casal é já uma névoa e o grande edifício abre-se para mim na vitória dos escombros, também eles entregues à anarquia da poeira. Tremo se olho para as minhas mãos. Tremo se a a memória me assalta. O tempo fala dentro de mim e eu sou apenas a imprecisão de um fluxo, a sombra delida que, em desespero, se agarra ao fetiche de um nome, como se as palavras não fossem vento no silêncio do tempo que passa.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O bosque obscuro

Valentín Albardíaz - Bosque Oscuro VII (1994)

Na Idade Média ainda era possível descrever a experiência mística a partir da metáfora do bosque deleitoso. Os prazeres que se abriam aí à experiência da humanidade foram-se, com o advento e progresso da Idade Moderna e a propensão desta para a acção, tornando cada vez mais estranhos. O apelo a uma vida que esteja para lá da acção, uma vida de reflexão e de contemplação, implica ainda, nos dias de hoje, a entrada no bosque, mas de um bosque obscuro, tal a desconfiança que tudo isto provoca na mentalidade dos homens modernos.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Encontrar a vida

Maurice Denis - Orpheus and Eurydice (1910)

Como todos os mitos, o de Orfeu e de Eurídice presta-se a interpretações múltiplas e diferenciadas. Podemos, por exemplo, pensar que Orfeu desce ao reino da morte para resgatar a sua própria alma, o seu princípio de vida que estaria morto pelo envolvimento na vida quotidiana. O que o mito nos diz, então, não é que o homem não pode olhar esse princípio - a alma - que o constitui. Diz-nos antes que não o pode contemplar em qualquer lugar e movido por qualquer desejo de certificação. Todo aquele que quer assegurar-se da sua vida já a perdeu. Só quem abandonar qualquer desejo de segurança e de certeza poderá encontrar essa mesma vida.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (264)

Edvard Munch - Winter Night (1900)

as noites de inverno
descem frias sobre a floresta
neve e solidão

domingo, 27 de dezembro de 2015

Tornar-se ausente

Eloisa Sanz - Ausência (1991)

Há um momento na vida dos homens em que o tornar-se presente - nos lugares que se pensam como significativos - é o seu grande desejo. A presença é um sintoma de que se é alguma coisa, a expressão do desejo de reconhecimento.  A generalidade só desiste de tornar-se presente quando percebe que não tem o poder suficiente para se impor ao mundo e aos outros. O viandante, porém, recusa a ilusão da presença. A sua viagem e a sua vida é um contínuo tornar-se ausente, um abandono persistente dos lugares da existência e de qualquer pretensão ao reconhecimento, um tornar-se nada no exercício da ausência.

sábado, 26 de dezembro de 2015

Lugares negros


Georgia O'keeffe - Black Place III (1944)


A relação entre a vida espiritual e os lugares negros é central. Por lugar negro deve-se entender qualquer lugar onde o espírito não penetrou. O trabalho do espírito não é outro senão fazer com que a luz resplandeça nas trevas, mesmo que estas não compreendam a luz e não a reconheçam.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (263)

George Inness - Evening Landscape (1862)

sombra pura sombra
a noite cai sobre a terra
os pássaros cantam

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Um jogo rítmico

José de Togores - Figura escondendo-se (1925)

A viagem espiritual dos homens é marcada por um jogo de ocultações e de manifestações. Por vezes, o espírito necessita de se esconder e nessa ocultação encontrar a energia, a força e a substância que levarão à sua manifestação. Ocultar-se não significa um puro desaparecimento, mas um momento em que o espírito se prepara para trazer ao mundo o inesperado, o inaudito e o inédito.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 12

Ignacio Díaz Olano - Desnudo (1895)

12. A luz que te toca

A luz que te toca
na sombra do dia
enche-me os olhos
com uma promessa
pura e fugidia.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Tagarelice

Giulio Rosati - Bavardages

A tagarelice é uma forma de construir comunidade, de pôr em comum, fundada naquilo que é, aparentemente, fútil. Esta forma ligeira de partilha não deve ser rejeitada liminarmente, pois ela corresponde à nossa efectiva condição. Os homens não são deuses, nem anjos, nem, em geral, filósofos que se entreguem à resolução especulativa dos mais intrincados problemas colocados pela razão. Tagarelar com os que nos são próximos ou com os que se aproximam de nós não é um mal em si mesmo. O perigo nasce apenas se esse tagarelar se torna um exercício infinito de alienação e não permite ao homem confrontar-se com o mistério que o constitui e que se esconde, muitas vezes, sob a pressão de uma tagarelice sem fim.

domingo, 20 de dezembro de 2015

A minha casa

Pierre Bonnard - A casa de Misia (1906)

Desenhei a casa na esperança de nela poder vir a viver. O tempo passou e a casa, primeiro vazia, foi ocupada por uma estranha mulher. Sentava-se na varanda e fechava os olhos. Sonhava, dizia-se nas redondezas. As tardes declinavam e quando a noite caía sobre a terra, ela entrava na casa e fechava a porta. O que se passava lá dentro, ninguém sabia. Talvez apenas os afazeres domésticos. Quando a luz da manhã voltava, ela abria as janelas. Chegada a tarde, tornava à varanda, sentava-se e de olhos fechados deixava a luz dançar sobre si. Sonhava. Uma tarde, do seu sonho, nasceu uma figura. Primeiro, era apenas uma sombra volátil. Ela, porém, não abriu os olhos. Com o passar do tempo, a sombra ganhou contornos nítidos, definiu as formas, tomou cores, alcançou substância. Por fim a sombra do seu sonho, agora dotada de voz, disse: esta é a minha casa. Fui eu que a desenhei e esperava-me dentro de ti.

sábado, 19 de dezembro de 2015

Da metamorfose

Brull Carreras - Metamorfose

Metamorfose. Mudar de forma. Tornar-se outro. A metanóia, a conversão, não é apenas uma transformação de comportamento ou de carácter. É um exercício de alteridade, de tornar-se outro, de deixar de ser o que se é e passar a ser outro. Não o outro estranho a si, o outro alienado e perdido, mas esse outro que é o caminho para  si mesmo.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

A promessa

Umberto Boccioni - Manhã (1909)

Quando a luz matinal chega tudo parece possível. A manhã irrompe sempre como uma promessa excessiva. A sabedoria não está em querer que essa promessa se cumpra, mas em saber como adaptar-se à realidade e à desilusão que a passagem das horas sempre traz consigo. A sabedoria está em saber ler o excesso mesmo nas promessas mais sedutoras.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Pontos de referência

Laurence Stephen Lowry - A Landmark (1936)

Primeiro o homem recebe um ponto de referência e guia a viagem por ele. A seguir, perde o norte e erra pelos caminhos sem querer saber de pontos de referência ou de marcos geodésicos. Depois, exausto da errância, procura um novo ponto de referência. Quando o encontra sente a tranquilidade de ter um guia que evita o perigo da perda, não suspeitando que corre agora o maior dos perigos, o de se crer numa viagem serena e segura. Alguns, porém, descobrem o ardil e abandonam toda a esperança de ter um ponto de referência que os guie. Nesse momento, deram o primeiro passo na viagem.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (262)

Piet Mondrian - De boerderij Weltevreden bij Duivendrecht (1905)

árvores de outono
erguidas sobre as águas
tempo de silêncio

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Da condição humana

Odilon Redon - O prisioneiro

Todos as pessoas nascem livres e iguais... Assim começa a declaração dos direitos do homem. Talvez fosse mais ajustado dizer Todas as pessoas nascem igualmente prisioneiras. O que se ganharia com isso? Trocar-se-ia uma liberdade dada como um facto, por um processo de libertação. A vida espiritual não é outra coisa senão o processo pelo qual o espírito quebra as cadeias que herdámos ao nascer. A liberdade não é um facto, mas um acto onde o homem, pela vida espiritual, se liberta da servidão - a dura necessidade imposta pelo corpo - que o nascer traz consigo.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Poemas do Viandante (521)

Amadeo de Souza Cardoso - Composição Abstracta - Estudo B (1913)

521. Círculos, cores abstracções

Círculos, cores, abstracções.
Com eles componho um mundo, 
invento cidades e desertos,
traço mesmo um barco
a naufragar no mar sem fundo.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Música e literatura

Willian M. Harnett - Music and Literature (1878)

O que distingue a música da literatura? Na música, o espírito infinito e intemporal entra no tempo e derrama-se sobre os homens, iluminando-os através do som. Na literatura, o espírito finito e temporal narra a sua errância no espaço e no tempo. Por vezes, fala da nostalgia daquilo que está para além da finitude e da temporalidade, mas a literatura é sempre física, enquanto a música é uma metafísica em acto.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (261)

Vincent Van Gogh - Campo de trigo com ciprestes (1889)

o trigo ondula
sob a sombra dos ciprestes
silêncio nos céus

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Música e vento

James Abbott McNeill Whistler - At the piano (1858-59)

Os dedos, os dedos dela são tão leves, folhas que caem sobre a água. Levantarei, também eu, voo um dia? Vestida de negro, ela vem e poisa diante do piano Depois, o tempo pára e a música vem até mim, entra-me pelos olhos e enche-me o peito, enquanto vejo os dedos deslizarem nas teclas e o mundo começa a dissolver-se. Quero falar, mas ela fechou os olhos e tudo é som, uma armadilha onde me sinto cativa, quase louca, como se a minha voz não fosse mais do que a música que solta por aquelas mãos, como se a minha vida estivesse presa entre duas notas. Quero gritar, mas sinto-me emudecida. Ela não pára e tudo em mim é luz. Ergo-me e, imponderável, bato as asas pela primeira vez. Voo e meu corpo é música e vento que se desvanece na janela da noite.