sábado, 11 de julho de 2015

Cegos conduzem cegos

Pieter Brueghel el Viejo - The Parable of the Blind Leading the Blind (1568)

Deixai-os. São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala. (Mat. 15:14)

A ideia de cegos a conduzirem outros cegos emerge num debate sobre o respeito pela tradição. Os fariseus parecem muito preocupados pela letra da lei e pelo cumprimento literal dessa mesma lei. O que Cristo torna patente, através do confronto entre os lábios (uma metonímia para discurso) e o coração, é o problema constitutivo de todo o logos humano, o de as palavras poderem estar radicalmente separadas das coisas. Cegos - sejam condutores ou conduzidos - são aqueles que falam, que dirigem, que executam mas que perderam o sentido essencial da palavra e da acção. São eles que se entregaram à errância. E quanto mais perdidos mais ferozes são na exigência da literalidade. Na verdade, a tradição, tomada assim, é uma traição ao espírito e um exercício do mal, como a história da humanidade nunca deixa de mostrar. A tradição, num outro e mais decisivo sentido, não é outra coisa se não a atenção ao coração, ao essencial, ao que está para além do discurso, do Verbo que está para além da palavra.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

O ritual da procissão

Ignacio Pinazo - Procesión del Corpus en Godella (1888)

A procissão, refiro-me àquela que tem um carácter religioso, é um momento ritual de culto religioso, marcado pela solenidade do acontecimento. Se nos ativermos, porém, a uma perspectiva tradicionalista da vida, talvez possamos descobrir uma outra coisa, a qual acabou por se tornar desconhecida para um homem de educação moderna. O caminhar solene da procissão não é apenas uma mera cerimónia religiosa, mas a simbolização da vida. A vida na sua inteireza, desde o nascimento até à morte é compreendida pelo homem de mentalidade tradicional e religiosa como um caminho, o qual, em todas as suas etapas, deve ser percorrido com a solenidade que os crentes ostentam no ritual da procissão. Nela, na procissão, é a vida que se representa, se extrai da banalidade do quotidiano e ganha um sentido que ultrapassa o mero facto de se estar vivo.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Haikai do Viandante (240)

Anónimo Pré-histórico - Arqueiro em corrida (Abrigo del Garroso. Alacón)

o arqueiro corre
preso na pedra da gruta
voz que me escuta

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Combate enigmático

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

A vida, segundo a longa experiência do senso comum, é uma luta sem fim. As tradições religiosas vêem-na, muitas vezes, como milícia. O mundo dos homens não deixa de ser um palco permanente de conflitos. Luta, milícia, conflito, toda essa experiência fala-nos do combate, mas de um combate enigmático. Mesmo quando lutamos contra a natureza, mesmo quando conflituamos com o próximo, é ainda esse combate decisivo e misterioso que travamos, o combate contra nós mesmos. É ele que se manifesta em todos os outros, que os anima e os faz brilhar. É esse combate que queremos ocultar de nós, alienando-nos nas guerras do mundo. É esse combate, porém, que contém o enigma que somos.

terça-feira, 7 de julho de 2015

A velha lápide

Albert Bloch - Antigo cemitério (1940-41)

Ela atravessava a aldeia e dirigia-se para o velho cemitério. Percorria-o como se o fizesse ao acaso, parando aqui e ali, lendo uma inscrição, compondo um ramo de flores, recolhendo-se perante a campa de um familiar. Depois sentava-se diante de uma lápide muito antiga, sem qualquer inscrição. Ninguém sabia a quem pertencia ou, sequer, quando fora ali posta. Já os avós dos avós dos mais velhos a conheciam naquele lugar, mas nem eles souberam a quem pertencia. Fascinada, pelo mistério, voltava lá todas as manhãs. Ainda não chegara aos setenta anos quando morreu. No dia do enterro, manhã cedo, os coveiros abriram a sepultura longe da lápide que fora o motivo da sua vida. Depois da missa, o cortejo percorreu a aldeia e entrou no cemitério. De súbito, uma estranha luz iluminou a velha lápide e o neto mais novo, uma criança de colo, balbuciou: é a casa da avó. Atónitos, olharam para lá. Diante da velha lápide uma cova funda esperava por ela.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

No lugar da insignificância

Pére Pruna - Belén (1931)

Voltemos ao episódio do nascimento de Cristo, em Belém. A história que nos é contada dá-lhe a aparência de um acidente, motivado pelo fortuito das circunstâncias políticas vividas na altura. Esta leitura, porém, é ingénua. Não podemos olhar para as narrativas evangélicas como crónicas de acontecimentos factuais, uma espécie de pré-história da história. Elas são antes a construção de um conjunto de pistas que devem orientar os homens no caminho para si mesmo, para a verdade. A conexão entre a pobreza do presépio de Belém e o nascimento do Cristo nesse lugar é a indicação de que o Absoluto se revela naquilo que há de mais pobre e, aparentemente, destituído de significação. O viandante, ao meditar, a narrativa sobre os acontecimentos de Belém é ensinado a olhar para aquilo que é sem valor, destituído de poder, marcado pela ausência do brilho que envolve a vaidade dos homens. No lugar da insignificância manifesta-se o que há de mais significante e significativo.

domingo, 5 de julho de 2015

Haikai do Viandante (239)

Edward Hopper - Adobe Houses (1925)

casas de adobe
erguem-se lentas do chão:
segredo na terra

sábado, 4 de julho de 2015

Signo sinal 7. No ermo dos montes

Joan Miró - Ermida de Sant Joan d'Horta (1917)

Há lugares que funcionam como um sinal, um indicador. Uma ermida perdida no ermo dos montes não é apenas o sinal de uma antiga devoção. É um lugar onde o viandante recobra as forças para a viagem, é o sinal de que não entrou na errância, o signo que confirma que ele segue no caminho para o qual não há confirmação.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Poemas do Viandante (513)

Luciano Freire - Trecho da Trafaria

513. o casario em ruínas

o casario em ruínas
desce pelo monte

a cor da melancolia
morre nas paredes

no velho vidro quebrado
pela luz do horizonte

no frio aceno da mão
com que te despedes

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Matéria de dogma

Pablo Picasso - Humo en Vallauris (1951)

O fumo que cresce e tapa o horizonte. É esta a condição humana. A limpidez original vai, durante a vida, sendo toldada pelo fumo trazido pelos dias, até que o horizonte fique completamente tapado. Num primeiro momento, o homem ainda possui uma reminiscência desse horizonte. Esta, porém, vai sendo paulatinamente apagada da memória até que nada reste. Nessa hora, crer que para lá do fumo existe um horizonte puro passa a ser matéria de dogma. O fuma tornou-se a única realidade digna de crença.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Um pressentimento

Paul Klee - "Quelle peut être la raison ..." (1911)

Há um tempo em que os seres humanos desconhecem a razão das coisas e daquilo que sucede e lhes sucede. Depois descobrem um dos seus passatempos preferidos: encontrar a razão das coisas. Dar a razão de... é um jogo poderoso e fascinante. Tão fascinante e poderoso que os homens perdem a abertura para o que não tem razão, para aquilo que não se deixa capturar pela veemência do logos. Por vezes, têm um pressentimento e, então, tremem: e se o decisivo estiver para além da veemência da razão?

segunda-feira, 29 de junho de 2015

O construtor de pontes

Alejandro Xul Solar - Anjos (1915)

De súbito, acordou e viu a sua vida diante de si. Não era daquelas visões que, diz-se, o moribundo tem antes do desenlace fatal. Era uma visão prosaica do seu trabalho. Arquitecto, passara a vida a construir pontes. Viu, naquele instante, cada rio que venceu, cada margem que ligou, cada ponte que ajudou a erguer para que a vida dos homens fluísse e as águas fossem vencidas. Sentiu um vazio. A sua vida não fora mais do que ligar o semelhante ao semelhante, um lado ao outro. Melancólico, tornou a adormecer e sobre ele veio novo sonho. Não sabia desenhar e nas suas costas cresceram umas enormes asas. A angústia aumentou, aumentou, até que viu, num lado da terra, a multidão dos homens e no céu uma presença viva sem forma, sem figura, sem matéria. E enquanto, atónito, olhava para um lado e para o outro, sentiu a verdade do seu ser. Não, ele não era um pobre construtor de pontes. Ele era a própria ponte que ligava uma e outra margem, o finito e o infinito, o relativo e o absoluto. Era um anjo perdido entre a terra e os céus.

domingo, 28 de junho de 2015

Haikai do Viandante (238)

Rodríguez Castelao - A casa do cruceiro (1922-29)

um velho cruzeiro
no frio do mármore cabe
um homem inteiro

sábado, 27 de junho de 2015

Expressão do Ser

Willian M. Harnett - Music and Literature (1878)

O romantismo viu a arte como uma expressão comunicativa da subjectividade do artista, das suas emoções e dos seus sentimentos. Nesta concepção há uma visão quase biográfica da obra de arte. Mas não será isto um equívoco? Que interesse pode ter a subjectividade de alguém, por mais complexa que possa ser? O que é importante não são os sentimentos ou as emoções singulares, mas aquilo que, através delas, se manifesta. Se um artista o é efectivamente aquilo que fala nele não é ele mesmo mas algo que o ultrapassa infinitamente. O eu que fala no poeta lírico não é o da subjectividade do poeta mas daquilo a que uma longa tradição deu o nome de Ser.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Entardecer

Paul Signac - Le Canal Saint-Martin, Paris (1933)

O dia declinava. Sentou-se à janela, o gato saltou-lhe para o colo, ronronou. Distraidamente, como se fosse um hábito antigo, começou a acariciá-lo. Fazia-o com lentidão bem medida, a necessária para que o bicho ali ficasse. Enquanto a mão ia e vinha pelo dorso do animal, os seus olhos perscrutavam o velho canal. Ficava horas a ver os barcos passar e, em cada um, era ela que passava. Nascera naquela casa e habituara-se a ver a água correr. A sua vida desenrolou-se ali. Nela perdera os pais, nela ficara quando casou, nela permaneceu quando o marido morreu e os filhos se fizeram ao mundo. Agora, que só lhe restava o gato, ela olhava da janela e deixava-se embalar no ritmo da tarde. Por vezes avistava uma sombra e logo descobria que era ela a sombra que entardecia no ronronar do gato, no deslizar do barco sobre águas.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Conversão do olhar

Ricardo Baroja Nessi - Cansaço (1951)

O cansaço não é apenas uma reacção ao excesso de esforço físico ou mental. Quando assim, é um sintoma da necessidade de descanso, para que a mesma actividade possa ser retomada. Há todavia um cansaço mais essencial, aquele que nenhum descanso tem o poder de fazer desaparecer. Esse cansaço é o sinal de que a forma como concebemos o mundo e nos concebemos dentro do mundo está em contradição com aquilo que há de mais fundamental em nós. Esse cansaço é a voz que chama não ao descanso mas à conversão do ponto de vista, à conversão do olhar.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

A velha alameda

Vincent Van Gogh - Alameda cerca de Nuenen (1885)

Era uma alameda sombria, daquelas alamedas que só existem no passado, num tempo já morto e por isso mesmo perfeito. As árvores teciam uma fina rede que coava os raios de sol, deixando chegar apenas uma luz irisada e suave. Era, na verdade, o seu mundo. Todas as manhãs, pouco depois da aurora despontar, levantava-se, percorria a alameda várias vezes, sempre com o mesmo passo, sempre concentrado no andar, sempre absorto no que via. Se alguém o cumprimentava, mal respondia, fascinado pelo caminho que percorria. Passaram os meses e os anos. O que para ele se tornou um hábito, para os outros tomou o nome de tradição. As razões daquele ir e vir matutino ninguém as conhecia. Se alguém lhe perguntava, respondia: o que sabemos nós do mundo? Enlouquecera, pensavam. Ele ria para dentro e dizia para si mesmo: como podem compreender que cada vez que percorro a velha alameda ela é diferente e sempre nova? Nem uma só vez repeti a viagem. Depois, abanava a cabeça, como se todos os fossem cegos, olhava as árvores e punha-se a caminho.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Dúvida e crença

Francisco Arjona - ¡Adelante con la duda! (1985)

A dúvida é um elemento estrutural de qualquer crença, tenha esta uma natureza epistemológica, moral, estética ou religiosa. Duvidar não é uma acção contra-natura do homem, pelo contrário. Duvidar é reconhecer os limites e a finitude dos seres humanos. A crença ou a fé de um homem que não duvida é destituída de qualquer valor, pois assenta numa denegação da sua condição, numa revolta contra a natureza limitada dos seus poderes, numa pretensão a um saber absoluto, seja qual for a área em que se manifeste esta crença. Em linguagem religiosa, esse tipo de fé não é outra coisa senão o pecado do orgulho.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Poemas do Viandante (512)

Francesco Clemente - Memória (1996)

512. dias de grande dispersão

dias de grande dispersão
vêm com o estio

desenham sombras na casa
rasgam as janelas

e lembram os dias passados
no mar da infância

o grande e bravio oceano
preso na memória

domingo, 21 de junho de 2015

Condição lunar

Georges Rouault - ... ao chegar a noite, saiu a lua (1930)

O homem é a lua sobre a terra. Como ela, ele pode reflectir uma luz cuja intensidade o ultrapassa e cuja origem está fora e muito acima dele. Esta sua condição lunar acentua-se quando a luz que o ilumina é interceptada e ele fica na escuridão. Também nessa hora ele é como a lua, é lua nova e às trevas ele tem o condão de acrescentar outras trevas.

sábado, 20 de junho de 2015

Haikai do Viandante (237)

Henri Edmond Delacroix Cross - Arbres au bord de la mer (1906-07)

presas ao estio
as árvores adormecem
entre céu e mar

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Símbolos e multiplicidades

Agustín Ubeda - ...Y se rompen los sueños (1990)

As múltiplas esferas do ser. Como poderemos entender isso? Tomemos, por exemplo, o caso do sonho, do sonho erótico, por exemplo. A um primeiro nível, estes sonhos simbolizam o desejo que perpassa nos seres humanos e que os constitui. Mas o desejo não é uma realidade última, mas apenas mais uma camada simbólica. No desejo erótico, simboliza-se um desejo de completude, e neste uma aspiração a ultrapassar a condição humana, numa cadeia de desejos e simbolizações que poderemos pressentir como infinita. Este pressentimento pode, por analogia, ser transferido para a esfera do ser, dando-nos a perceber a sua multiplicidade e, ainda, a possibilidade de cada uma delas simbolizar outra ou outras, num encadeamento sem fim.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Aprender a ler

Francisco Bores - La lectura (1934)

Ler. Que melhor coisa poderia haver na vida que deixar correr letras e palavras diante dos olhos? A decifração das combinações do alfabeto ocupara-lhe grande parte da existência. Ao pegar num livro a vida, sempre tão enigmática e destituída de significação, ganhava sentido no sentido que ele encontrava nas frases e nos textos. Um dia, ao ler, mais uma vez, o Quixote, adormeceu. Foi um sono pesado e atravessado por um estranho pesadelo. Via-se a ler e, de súbito, a realidade envolvente dissolvia-se, depois era o seu próprio corpo que perdia consistência. Apenas o livro permanecia mas, estranhamente, fechado e a crescer como se dentro dele houvesse vida. Durante semanas meditou o sonho e procurou o seu sentido. Seria a leitura inimiga da realidade? Seria o livro a única realidade e o resto, ele próprio, uma ilusão? Um sábado, depois de almoço, saiu de casa e mal chegou à rua pessoas, coisas, paisagens desenharam, perante os seus olhos, excêntricas combinações, caracteres vivos. Ao olhá-las, descobria-lhe o enigmático sentido. Lia. De tão espantado, gritou: aprendi a ler. 

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Poemas do Viandante (511)

Salvador Dali - El comité Marcha del Tiempo - Mariposa (1940)

511. Qual a matéria do tempo

Qual a matéria do tempo?
Uma rosa, uma luz?

Não. Nem o vento nem a água
nem os campos no outono.

Não. Nem o amor nem a vida
nem a lua no firmamento.

Uma sombra na alvorada
fia passado e futuro.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Enfrentar a fantasia

Rafael Durancamps - La del alba sería cuando salió Don Quijote 

Será o viandante como o Quixote? Tomará ele por gigante o que não passa de moinho. D. Quixote parte para encontrar a ilusão, o viandante sabe já que está na ilusão e se se faz ao caminho é para enfrentar as suas próprias fantasias. É para descobrir que um moinho é um moinho e um gigante é um gigante. Descobrir isso não é fácil, pois os seres humanos vivem sempre mais confortáveis se a ilusão desce sobre eles e os protege da realidade.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Além do prazer e da dor

Pierre Bonnard - Le Plaisir (1906)

O prazer foi, durante muito tempo, um campo de conflito feroz. Os prazeres bons e os maus, os prazeres do corpo e os do espírito, a hierarquia de prazeres, a relação do prazer com a dor, tudo isso foi objecto de dissecação e de dissensão. A viagem que cabe a cada homem, o seu confronto com a finitude e a aspiração ao absoluto, não exigirão uma outra posição? A querela sobre o prazer não será ainda uma forma de desatenção ao essencial? A viagem a que os homens são chamados exige que vão para lá do prazer e da dor, isto é, que vão para lá daquilo que os fecha sobre si. Não se trata de negar o prazer ou esquecer a dor, trata-se de os olhar nos seus limites e seguir viagem, seguir para além deles.

domingo, 14 de junho de 2015

A ocultação de si

José e Togores - Figura escondiéndose (1925)

Há duas formas como os seres humanos se entregam à ocultação de si. Uma, aquela que é mais compreensível, em que tentam afastar-se, de forma mais ou menos ostensivo, da claridade que é o espaço público. Não querem ou não suportam, por diferenciados motivos, que os holofotes incidam sobre a sua pessoa. Esta ocultação não é a fundamental e, na verdade, não é diferente do comportamento antagónico, o daqueles que ostensivamente se mostram na clareira pública e exigem que os holofotes incidam sobre eles. A segunda ocultação é aquela em que a própria pessoa oculta aquilo que há de essencial em si, aquilo que está para além da máscara que a pessoa é. Geralmente, esta ocultação é tão forte que os seres humanos se sentem reduzidos à sua máscara, e de si não sabem mais do que os revérberos desta máscara no espelho social.

sábado, 13 de junho de 2015

O grande escultor

JCM - Time on space. Baleal (2007)

O trabalho do tempo sobre a pedra esculpe estranhos arquipélagos. Neles, o viandante perscruta o pulsar da vida, as águas que escorrem, a flora que insiste em abrir-se para a luz. Ouve o murmúrio das ondas e espera. Deixa que o tempo se suspenda e, nessa suspensão, venha até ele o eco longínquo da aurora. Nesse momento, tudo estará coberto pelas águas e um barco virá para o levar. O imenso império oceânico chama-o para que, noutros lugares, ele contemple o grande escultor a trabalhar a pedra, a abrir canais, a desenhar territórios, a preparar o trabalho dos geógrafos do futuro.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Haikai do Viandante (236)

Emilio Sánchez Perrier - Atardecer en Triana (1907)

a tarde que cai
sobre o murmúrio das água
luz que vem e vai

quinta-feira, 11 de junho de 2015

O cavaleiro errante

Oskar Kokoschka - Cavaleiro errante (1915)

Tinha chegado ao fim da linha, pensou. Ouvia o correr das águas do rio e, nessas águas, via desfilar, cena atrás de cena, os episódios da sua errância. Quantas metas falhadas? Quantas oportunidades desperdiçadas? Quantos caminhos andados por engano? Não, não era um cavaleiro andante coroado de vitórias em mil combates decisivos. Era apenas um homem que caminhara de erro em erro até à noite em que tudo se desfaz. Fechou os olhos e entregou-se ao rumor das águas. Primeiro, pareceu-lhe um alvoroço confuso. Depois, a confusão ganhou em sentido no seu espírito e o rio caminha vasussurrante na planície. Por fim, quando a aurora despontou, era apenas um débil murmúrio que ecoava no seu coração. Levantou-se e naquele instante, pela primeira vez, soube o caminho a seguir e aquilo que o esperava.