sexta-feira, 10 de abril de 2015

Esquecer a sua natureza

Juán José Vera - Ansiedad (1951)

A ansiedade é compreendida, geralmente, como uma perturbação provocada pela eminência de um perigo ou de alguma coisa desagradável ao indivíduo. Se nos adentrarmos na arqueologia do termo encontramos a disposição para a inquietação. Ora esta disposição para estar inquieto tem o seu centro não no que está fora do indivíduo mas naquilo que ele traz em si e ocultou de si mesmo. O perigo de se alienar da sua verdadeira natureza, o perigo de se esquecer de si. 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Filhos pródigos

Aristide Maillol - L'enfant prodigue (1889)

Por vezes surge a pergunta: quem é o viandante? A resposta é muito simples. O viandante é o filho pródigo que procura a casa onde nasceu, que busca acolher-se ao lar e à pátria onde pertence. Na verdade, cada um de nós é um filho pródigo e, por isso, está a caminho de casa. Cada um de nós é um viandante.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Os quatro elementos

Ivonne Sánchez Barea - Aire I (1997)

A velha doutrina dos quatro elementos - terra, água, ar e fogo - tinha, na sua ingenuidade e inocência míticas, um potencial de descrição da realidade mais elevado do que aquilo que se pensa hoje em dia. Certamente, esse potencial não estava ligado a uma descrição física do universo, mas a uma descrição do homem, dos seus estados múltiplos possíveis. Não se pode dizer que esses elementos caracterizassem diversas formas de espírito humano, mas antes que seriam metáforas que designavam formas de ser que continham tanto o corpo como o espírito. Fundamentalmente, são metáforas das possíveis metamorfoses psicossomáticas, no sentido grego dos termos presentes nesta palavra, pelas quais pode o ser humano passar,

terça-feira, 7 de abril de 2015

Designações vazias

Agnes Martin - A rosa (1964)

A pintura contemporânea tende a estabelecer uma relação arbitrária entre o quadro e a designação que lhe é atribuída. Esta arbitrariedade deriva do choque entre o que é visível e a palavra. Talvez a finalidade desta estratégia seja a de marcar a diferença abissal entre o pictórico e a sua interpretação, já que toda a denominação pode ser pensada como interpretação. O espectador, desconcertado, tem de encontrar um caminho para a experiência estética e esquecer a palavra. Isto, contudo, é apenas um dos lados do problema. O outro é a revelação do carácter vazio - um vazio de grande plasticidade - da própria linguagem, onde as palavras estão disponíveis para acolher aquilo que se possa colocar dentro delas. O que é válido para a arte é válido para qualquer forma da vida do espírito, nomeadamente para a experiência religiosa. Entre as palavras e a experiência há um abismo, o qual é ocultado por uma crença mágica nas palavras. Elas, porém, são apenas designações vazias a que cabe dar, pela experiência efectiva, conteúdo e verdade.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Poemas do Viandante (503)

Piet Mondrian - De boerderij Weltevreden bij Duivendrecht (1905)

503. as tristes tardes de abril

as tristes tardes de abril
cheias de nostalgia

avançam frias e serenas
sobre a velha casa

ao longe ouvem-se sinos
e risos magoados

ouve-se a voz da tua sombra
aberta ao silêncio

domingo, 5 de abril de 2015

Da imperfeição do amor

Francisco Arjona - Amor imperfecto (1984-86)

E deixa o meu pranto chegar a Ti. (T. S. Eliot, Quarta-feira de cinzas VI)

Eliot conclui assim o último poema de Quarta-feira de cinzas. E o viandante interroga-se sobre este pranto, sobre a estranha necessidade que o poeta tem em que ele se eleve a Deus. E só um motivo ele descobre que mereça o pranto e a necessidade de o elevar ao Alto, o da imperfeição do amor. A limitação da capacidade de abrir-se à interpelação do totalmente Outro, de O escutar e de O fazer viver na comunidade dos homens. E talvez tudo isto se possa ainda explicar pelo primeiro verso do primeiro poema: Porque eu não espero voltar outra vez.

sábado, 4 de abril de 2015

A experiência da via

Stipo Pranyko - Altar para um agnóstico (1996)

Eu sou a via, e a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, senão por mim. (João 14:6)

A vida espiritual confronta-se sempre com o agnosticismo. Este mais não é do que a confissão de um não saber, de ausência de conhecimento. Muito antes de João ter escrito as palavras de Cristo em epígrafe, Platão definiu o conhecimento como crença verdadeira justificada. A vida espiritual sofreria, então, de uma limitação que a colocaria na classe das crenças dogmáticas, às quais falta justificação. Não será por isso um conhecimento, uma gnose, o que, na verdade e de forma surpreendente, torna os crentes em agnósticos. Porém, há uma justificação que desfaz o hipotético dogmatismo e o concomitante agnosticismo. A crença na verdade e na vida justifica-se não por uma adesão irracional e incompreensível mas pela experiência da via, do caminho. A experiência é a mais radical justificação que uma crença pode obter. Assim sendo, a fé, como nos ensina a palavra latina fides, não é outra coisa do que o compromisso com a via, a fidelidade à própria experiência.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

A inversão da gravidade.

Saul Steinberg - Gravity Reversed (1961)

Sexta-feira de Paixão. Como é que nós, viandantes nos tempos modernos tão cheios de ciência, podemos interpretar este acontecimento fundador da nossa cosmovisão? Apenas uma expressão: inversão da gravidade. Aquilo que nos rebaixa tornou-se naquilo que nos eleva. E isso não é o menor dos mistérios.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Haikai do Viandante (228)

Giorgio Morandi - Paisagem (1936)

sombras na paisagem
lembram ociosos gigantes
presos na viagem

quarta-feira, 1 de abril de 2015

De floração em floração

Adolfo Guiard - Árbol en flor

Também as árvores têm o seu caminho. De floração em floração, elas respondem ao apelo que a natureza inscreveu no seu ser. Também o viandante se confronta com o eterno retorno e pergunta-se, a cada nova primavera, se também ele responde ainda ao apelo que o chamou à vida.

terça-feira, 31 de março de 2015

Sobre mandamentos e imperativos

MC Escher - Ascending and descending (1960)

Quando pensamos no conjunto de mandamentos e imperativos que através das religiões e da filosofia são impostos ao homem, compreendemos o desespero com que a humanidade enfrenta a realidade que é a sua. A vida dos homens parece um ciclo, eternamente repetido, de quedas e ascensões. Descer e subir. Subir e descer. O mandamento e o imperativo nascem então da impotência do homem em interromper o ciclo e evitar, depois de cada ascensão, a queda que se lhe segue. Mas quando a queda não for a continuação da ascensão, o homem já não será um homem e mandamentos e imperativos para nada lhe servirão.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Poemas do Viandante (502)

Jorge Apperley - Nu (1945)

502. e o tempo vinha vestido

e o tempo vinha vestido
de fogo e água

um movimento na tarde
a abrir o teu corpo

um corpo azul e secreto
frágil como um rio

cantante como o incêndio
que em mim te espera

domingo, 29 de março de 2015

Um jardim para Orfeu

Paul Klee - A garden for Orpheus (1926)

Se ouvirmos a expressão um jardim para Orfeu, é provável que o espírito se interrogue sobre aquilo que será possível escutar em tal lugar. Será a música de Orfeu ou o seu lamento pela perda de Eurídice, pela perda do amor. Mas um jardim para Orfeu só pode ser compreendido se compreendermos o que representa a morte e perda de Eurídice. Esta não é diferente da queda de Adão e a consequente expulsão do Éden. O jardim para Orfeu não pode ser outro senão aquele de onde Adão foi expulso.

sábado, 28 de março de 2015

O destino de Ícaro

Henri Matisse - Ícaro (1943-44)

No destino de Ícaro simboliza-se a condição do homem. Nem demasiado perto das profundidades das águas nem excessivamente chegado à luz do sol. Atraído pela luz, as asas derreteram e a queda foi o destino de Ícaro. Esta queda não deixa de ter uma ambivalência estrutural. Significou a morte e, ao mesmo tempo, a entrada na vida. A morte da sua condição sobre-humana; a vida pela sua redução à mera humanidade. Com Ícaro aprende-se que não cabe ao homem submeter a luz ao seu desejo, mas é sua condição esperar que ela chegue e o ilumine.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Na praça pública

Pierre Bonnard - La place de Clichy (1912)

A praça pública é o lugar de todos os perigos. Não porque aí possam ocorrer coisas terríveis que ponham em causa a existência, mas porque é o lugar onde só subsistimos sob a protecção de uma máscara. A sua frequência torna a máscara num hábito, e este é uma segunda natureza. Uma natureza que esconde e faz esquecer uma outra mais original, uma natureza essencial, que pode ser insuportável aos que da vida só conhecem a praça pública.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Haikai do Viandante (227)

Carlo Carra - La foce del Cinquale (1928)

sedento e secreto
o rio atira-se ao mar
na luz encoberto

quarta-feira, 25 de março de 2015

A viagem como composição

Piet Mondrian - Composición VII (1913)

Tudo é composição, arranjo, entrelaçamento de fios, cruzamento de linhas e formas, conjugação de notas. Também a viagem - aquela que conduz o homem de si a si mesmo, aquela que, ao apelo da voz interior, o leva a responder eis-me aqui - é uma composição. A princípio, o viandante força os elementos a cruzarem-se e quer fazer a sua própria composição, quer ser o autor de si mesmo. O tempo, porém, precipita-o na errância. Perdido, abre mão da sua autoria, para que uma outra, mais decisiva, se manifeste e a composição se torne fluida, leve, como se fosse a expressão autêntica daquele que é.

terça-feira, 24 de março de 2015

A tua casa

Kazimir Malevich - Casa com cerca (1910-11)

Não adianta cercar a casa. Não adianta fechar as portas e cerrar as janelas. Não adianta esconderes-te do mundo na solidão campestre. Se trazes o mundo e os seus negócios dentro de ti, eles perseguir-te-ão até ao mais recôndito dos lugares. Se dentro de ti os abandonaste, então qualquer lugar é a tua casa, qualquer lugar te serve para o silêncio e a solidão que reclamas.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Uma viagem para si

André Louis Derain - Bacchic dance (1906)

A dança báquica é, na antiga tradição dos gregos, mais do que o símbolo da viagem, mas a realização da própria viagem. Mais do que o furor orgiástico, que tanto seduz a infantilidade moderna, é a realização do caminho que vai do corpo que se tem ao ser que se é. Pela dança, pela entrega plena ao frenesim dionisíaco, rompe-se o dique que separa a bacante da sua própria natureza, permitindo-lhe então a experiência plena de si mesma.

domingo, 22 de março de 2015

Estar à janela

Frances Hodgkins - At the window (1912)

Estar à janela é a condição mais equívoca do homem. Naquele que se senta à janela, cruza-se a nostalgia de estar do lado de lá, jogado no desconforto da viagem e na rudeza do desconhecido, com o temor que o prende ao conforto do que é familiar. Estar à janela é estar na fronteira, nessa linha imaginária que separa dois mundos. Na verdade, estar à janela é não estar em lado nenhum.

sábado, 21 de março de 2015

Poemas do Viandante (501)

León Kossoff - Outside Kilburn Underground, Spring (1976)

501. as águas negras do inverno

as águas negras do inverno
partiram cansadas

deixaram sobre o céu
um rasto de nuvens

e um astro desbotado
sem névoa nem fogo

sem uma chama que ateie
luz na primavera

sexta-feira, 20 de março de 2015

A solidão que cura

José Iranzo Almonacid - Isolamento (1978)

O isolamento pode ser o resultado de uma vida mecânica que segrega, numa sociedade de massas, a solidão. Nessa mecanicidade, o solitário sente-se vazio e este vazio é preenchido pela depressão. A solidão é, então, uma patologia perigosa. Há contudo outra solidão, a daquele que se isola para que um vazio se abra em si e, assim, seja preenchido pela plenitude daquilo que é. Este é o isolamento que cura e dá vida. Na verdade, só a solidão cura a solidão.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Haikai do Viandante (226)

Elmer Bischoff - Dragon (1948)

um dragão dorme
à porta do paraíso
velho frio disforme

terça-feira, 17 de março de 2015

O caminho oblíquo

Albert Gleizes - O caminho, Meudon (1911)

Por mais que deseje um caminho claro e distinto, o viandante acabará por descobrir que o seu desejo será sempre frustrado. Não há caminho espiritual que seja a execução de um conjunto de imperativos racionais, que o farão viajar por um espaço geométrico determinado pela limpidez da razão. A cada momento, o caminho varia, apresenta obstáculos, impõe retornos, logo seguidos de avanços, perde a luz que o ilumina, para que o viandante logo a descubra quando as trevas se tornarem mais intensas. Será sempre oblíquo o caminho do homem em direcção à voz que o chama.

domingo, 15 de março de 2015

A agonia em Getsemani

Paul Gauguin - Agony in the Garden (1889)

Na simbólica do cristianismo, a agonia em Getsemani preludia o sofrimento de Cristo pela prisão e morte que se aproximam. Uma leitura superficial fará da agonia o sinal de um destino necessário, inevitável. O que o cristianismo traz de novo é a subversão desse destino pela introdução da ressurreição, pelo desligar dos laços da estrita necessidade natural e a afirmação de uma liberdade que supera o destino. A agonia em Getsemani é o sofrimento que engendra a liberdade e nos torna livres.

sábado, 14 de março de 2015

Poemas do Viandante (500)

Marc Chagall - The dream (1976)

500. esse sonho mineral

esse sonho mineral
sangra na noite

uma rosa de silêncio
ferida no peito

uma estrela cadente
de pedra e sal

sexta-feira, 13 de março de 2015

Da acrobacia espiritual

Marino Marini - Acrobats (1960)

Muitos deixam-se seduzir pelas acrobacias do espírito, seja pela capacidade de cálculo e de argumentação da razão, seja por hipotéticos poderes espirituais. A vida espiritual não é, todavia, uma exibição do esplendor circense do ego. A única acrobacia verdadeiramente difícil, e útil, é o ater-se à realidade tal como ela é. Melhor, tal como ela brota a cada instante.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Haikai do Viandante (225)

Karl Schmidt-Rottluff - Casa em ruínas (1930)


tempo de ruína
na velha casa caiu
pedra cinza frio

quarta-feira, 11 de março de 2015

Um perigo vital

Aurelie Nemours - L'innombrable (1977-98)

O incontável não o é porque a sua quantidade seja infinita, mas porque já não pertence à dimensão do número e do cálculo. Os homens de hoje perderam-se no número e foram armadilhados pelo cálculo, mas a vida do espírito começa quando a quantidade cede o lugar à qualidade e todo o cálculo se torna não apenas uma ociosidade mas um perigo vital.

terça-feira, 10 de março de 2015

O corpo e o espírito

 Georgia O'keeffe - Abstraction, blue (1927)

Um equívoco corrente sobre a vida espiritual assenta na ideia de que vida do espírito e abstracção conceptual são expressões sinónimas. A abstracção conceptual vive da desencarnação e da descorporalização da realidade. A vida do espírito, porém, ocorre na carne e no corpo, afirma-os e eleva-os. Não por acaso o cristianismo proclamou, desde muito cedo, que o corpo era o templo do Espírito Santo.