quinta-feira, 26 de março de 2015

Haikai do Viandante (227)

Carlo Carra - La foce del Cinquale (1928)

sedento e secreto
o rio atira-se ao mar
na luz encoberto

quarta-feira, 25 de março de 2015

A viagem como composição

Piet Mondrian - Composición VII (1913)

Tudo é composição, arranjo, entrelaçamento de fios, cruzamento de linhas e formas, conjugação de notas. Também a viagem - aquela que conduz o homem de si a si mesmo, aquela que, ao apelo da voz interior, o leva a responder eis-me aqui - é uma composição. A princípio, o viandante força os elementos a cruzarem-se e quer fazer a sua própria composição, quer ser o autor de si mesmo. O tempo, porém, precipita-o na errância. Perdido, abre mão da sua autoria, para que uma outra, mais decisiva, se manifeste e a composição se torne fluida, leve, como se fosse a expressão autêntica daquele que é.

terça-feira, 24 de março de 2015

A tua casa

Kazimir Malevich - Casa com cerca (1910-11)

Não adianta cercar a casa. Não adianta fechar as portas e cerrar as janelas. Não adianta esconderes-te do mundo na solidão campestre. Se trazes o mundo e os seus negócios dentro de ti, eles perseguir-te-ão até ao mais recôndito dos lugares. Se dentro de ti os abandonaste, então qualquer lugar é a tua casa, qualquer lugar te serve para o silêncio e a solidão que reclamas.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Uma viagem para si

André Louis Derain - Bacchic dance (1906)

A dança báquica é, na antiga tradição dos gregos, mais do que o símbolo da viagem, mas a realização da própria viagem. Mais do que o furor orgiástico, que tanto seduz a infantilidade moderna, é a realização do caminho que vai do corpo que se tem ao ser que se é. Pela dança, pela entrega plena ao frenesim dionisíaco, rompe-se o dique que separa a bacante da sua própria natureza, permitindo-lhe então a experiência plena de si mesma.

domingo, 22 de março de 2015

Estar à janela

Frances Hodgkins - At the window (1912)

Estar à janela é a condição mais equívoca do homem. Naquele que se senta à janela, cruza-se a nostalgia de estar do lado de lá, jogado no desconforto da viagem e na rudeza do desconhecido, com o temor que o prende ao conforto do que é familiar. Estar à janela é estar na fronteira, nessa linha imaginária que separa dois mundos. Na verdade, estar à janela é não estar em lado nenhum.

sábado, 21 de março de 2015

Poemas do Viandante (501)

León Kossoff - Outside Kilburn Underground, Spring (1976)

501. as águas negras do inverno

as águas negras do inverno
partiram cansadas

deixaram sobre o céu
um rasto de nuvens

e um astro desbotado
sem névoa nem fogo

sem uma chama que ateie
luz na primavera

sexta-feira, 20 de março de 2015

A solidão que cura

José Iranzo Almonacid - Isolamento (1978)

O isolamento pode ser o resultado de uma vida mecânica que segrega, numa sociedade de massas, a solidão. Nessa mecanicidade, o solitário sente-se vazio e este vazio é preenchido pela depressão. A solidão é, então, uma patologia perigosa. Há contudo outra solidão, a daquele que se isola para que um vazio se abra em si e, assim, seja preenchido pela plenitude daquilo que é. Este é o isolamento que cura e dá vida. Na verdade, só a solidão cura a solidão.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Haikai do Viandante (226)

Elmer Bischoff - Dragon (1948)

um dragão dorme
à porta do paraíso
velho frio disforme

terça-feira, 17 de março de 2015

O caminho oblíquo

Albert Gleizes - O caminho, Meudon (1911)

Por mais que deseje um caminho claro e distinto, o viandante acabará por descobrir que o seu desejo será sempre frustrado. Não há caminho espiritual que seja a execução de um conjunto de imperativos racionais, que o farão viajar por um espaço geométrico determinado pela limpidez da razão. A cada momento, o caminho varia, apresenta obstáculos, impõe retornos, logo seguidos de avanços, perde a luz que o ilumina, para que o viandante logo a descubra quando as trevas se tornarem mais intensas. Será sempre oblíquo o caminho do homem em direcção à voz que o chama.

domingo, 15 de março de 2015

A agonia em Getsemani

Paul Gauguin - Agony in the Garden (1889)

Na simbólica do cristianismo, a agonia em Getsemani preludia o sofrimento de Cristo pela prisão e morte que se aproximam. Uma leitura superficial fará da agonia o sinal de um destino necessário, inevitável. O que o cristianismo traz de novo é a subversão desse destino pela introdução da ressurreição, pelo desligar dos laços da estrita necessidade natural e a afirmação de uma liberdade que supera o destino. A agonia em Getsemani é o sofrimento que engendra a liberdade e nos torna livres.

sábado, 14 de março de 2015

Poemas do Viandante (500)

Marc Chagall - The dream (1976)

500. esse sonho mineral

esse sonho mineral
sangra na noite

uma rosa de silêncio
ferida no peito

uma estrela cadente
de pedra e sal

sexta-feira, 13 de março de 2015

Da acrobacia espiritual

Marino Marini - Acrobats (1960)

Muitos deixam-se seduzir pelas acrobacias do espírito, seja pela capacidade de cálculo e de argumentação da razão, seja por hipotéticos poderes espirituais. A vida espiritual não é, todavia, uma exibição do esplendor circense do ego. A única acrobacia verdadeiramente difícil, e útil, é o ater-se à realidade tal como ela é. Melhor, tal como ela brota a cada instante.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Haikai do Viandante (225)

Karl Schmidt-Rottluff - Casa em ruínas (1930)


tempo de ruína
na velha casa caiu
pedra cinza frio

quarta-feira, 11 de março de 2015

Um perigo vital

Aurelie Nemours - L'innombrable (1977-98)

O incontável não o é porque a sua quantidade seja infinita, mas porque já não pertence à dimensão do número e do cálculo. Os homens de hoje perderam-se no número e foram armadilhados pelo cálculo, mas a vida do espírito começa quando a quantidade cede o lugar à qualidade e todo o cálculo se torna não apenas uma ociosidade mas um perigo vital.

terça-feira, 10 de março de 2015

O corpo e o espírito

 Georgia O'keeffe - Abstraction, blue (1927)

Um equívoco corrente sobre a vida espiritual assenta na ideia de que vida do espírito e abstracção conceptual são expressões sinónimas. A abstracção conceptual vive da desencarnação e da descorporalização da realidade. A vida do espírito, porém, ocorre na carne e no corpo, afirma-os e eleva-os. Não por acaso o cristianismo proclamou, desde muito cedo, que o corpo era o templo do Espírito Santo.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Do jogo da conversão

Max Ernst - La bicicleta gramínea (1920-21)

O uso da palavra conversão, nos jogos de linguagem da religião, conduziu a uma degradação da palavra, de tal forma que, para além de um mero sentimento moral, nada mais se pensa nela. E contudo a conversão implica um novo olhar sobre as coisas e um novo modo de ser. A arte, por exemplo, é um jogo de conversões, onde se aproximam coisas que, pelo hábito, as temos como separadas. Converter-se é, então, um processo de aproximar o inaproximável, de, por exemplo, ver o inimigo como um próximo.

domingo, 8 de março de 2015

O silêncio dos eremitas

Albano Vitturi - Gli erimiti di Faida (1934)

Penso muitas vezes no silencioso destino desses eremitas que se afastam dos homens não por misantropia mas por amor. Por amor a Deus, certamente, mas também à humanidade e, por estranho que pareça, ao mundo. É como se no silêncio meditativo se tecesse uma rede infinita que protege a humanidade contra os  seus desvarios e evita que o mundo se afunde no caos.

sábado, 7 de março de 2015

Haikai do Viandante (224)

Jackson Pollock - Autumn Rhythm - Number 30 (1950)

na queda da folha
descubro o ritmo do outono
a luz que te olha

sexta-feira, 6 de março de 2015

Do uno e do múltiplo

Filippo de Pisis - Paesaggio alpestre con case (1927)

Dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma. (Bernardo Soares, Livro do Desassossego)

Se habitamos perto do mar, observamos em tudo a multiplicidade, e o próprio viandante se descobre múltiplo, ao descobrir em cada emoção, em cada sensação, em cada sentimento uma alma e uma personalidade diferentes. Ao subir a montanha, o que parecia múltiplo torna-se uno e ele próprio, no ar rarefeito que o circunda, descobre-se como uma unidade secreta, que só na altura se revela e se abre para o seu mistério.  

quinta-feira, 5 de março de 2015

Poemas do Viandante (499)

Pierre-Albert Marquet - Pino en Argel (1932)

499. o ondular dos pinheiros

o ondular dos pinheiros
dentro do silêncio

o bálsamo das tuas mãos
sobre a minha pele

são a casa onde habito
água luz memória

quarta-feira, 4 de março de 2015

O tigre e o caçador

Charles Lapicque - Chasse au tigre (1961)

Primeiro, o viandante pensa que o mais importante é enfrentar o tigre, caçá-lo e assim domar a natureza. Depois, convence-se de que o tigre não está fora mas dentro de si, que é aí, na natureza íntima, que é preciso matá-lo. Por fim, descobre que a única coisa a fazer é cavalgar o tigre, dançar com aquilo que o envolve e esquecer a caça, pois o tigre e o caçador são um e o mesmo.

terça-feira, 3 de março de 2015

Sobre a água

Joaquín Mir - Aguas de Moguda

A água serve como metáfora central na caracterização da contemporaneidade feita pelo sociólogo Zygmunt Bauman. De certa forma, esta metáfora não é apenas descritiva. Contém uma avaliação negativa da fluidez do mundo. Contudo, antes de ser metáfora, a água é símbolo e, como tal, traz em si uma ambiguidade essencial. Se pode ser vista negativamente como destruição dos laços sólidos que ligam os homens, também pode ser vista como a liberdade do espírito que não se apega a nenhuma configuração relativa, submergindo-as e libertando-se, encontrando sempre e sempre novos caminhos.

segunda-feira, 2 de março de 2015

A natureza da viagem

Lucien Coutaud - Souvenir d'un voyage (1963)

O Senhor disse a Abraão: Deixa a tua terra, a tua família, a casa de teu pai e vai para a terra que eu te mostrar. (Génesis, 12:1)

Qual a natureza da viagem que toda a vida é ou deve ser? Em primeiro lugar, é um abandono, um corte, a ruptura com o passado, com o já instituído. Esvaziar-se de tudo o que está dado. Depois, não saber para onde se vai, não haver, ao partir, qualquer indicação do destino. Apenas uma voz fala e a promessa que ela institui é a única bússola do viandante. A terra que o espera não depende dele, da sua vontade ou inteligência. Depende da promessa escutada e da revelação que o aguarda. Esta é a viagem, o resto é turismo.

domingo, 1 de março de 2015

Haikai do Viandante (223)

Pier Luigi Lavagnino - Memória (1989)

estranha memória
a que guarda entre cores
o anjo da história

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Quebrar a pedra

George Seurat - The Stone Breaker (1882)

A viagem é como um quebrar a pedra, um rasgar da matéria da vida. Não para as desfigurar ou aniquilar, mas para libertar o espírito que nelas se escondem e, desse modo, dar uma outra figura à existência.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Iluminar a luz

Edward Hopper - Sun in an Empty Room (1963)

A modernidade trouxe consigo a ideia de que a razão continha uma luz própria que deveria ser derramada sobre o mundo para o ordenar, melhorar, refazer. Hoje, que o cansaço de ser moderno se tornou patente em todos os lugares, aquilo que o viandante pretende na sua viagem é deitar fora o desperdício com que a razão lhe ocupou o espírito, para que este, vazio, possa receber uma outra luz, aquela que poderá iluminar a luz da própria razão.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Da lentidão da sabedoria

Giacomo Balla - Abstract Speed - The Car has Passed (1913)

A sabedoria, se compreendida como sageza e não erudição, exige a demora. Só a lentidão tem o poder de tornar concreta essa sabedoria. O nosso tempo, todavia, não aprecia a lentidão. Por isso, tudo nele é velocidade e abstracção.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O caminho da sabedoria

Charles Lapicque - L’invitation à la sagesse (1961)

Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus. (Mateus, 5:3)

Tanto na tradição grega como na judaico-cristã, o caminho da sabedoria nasce do exercício de despojamento do próprio espírito. Sócrates clamava que nada sabia e que essa era a mais elevada sabedoria. Como Cristo, também ele era pobre em espírito. Nicolau de Cusa, no século XV, sintetizou as duas tradições no conceito de douta ignorância. Esta pobreza, tida como ignorância, nasce do desfazer das ilusões que a erudição traz consigo, mas, mais do que isso, ela é a condição de possibilidade para que o viandante possa responder ao apelo da sabedoria.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

A noite e a luz

Benvenuto Benvenuti - Tramonto sul mare (1906)

Voltemos ao símbolo e à sua ambiguidade constitutiva. O pôr-do-sol simboliza muitas vezes o declínio, a anunciação do fim, o triunfo das trevas sobre a luz. Mas pode também significar algo completamente diferente. Pode significar a entrada no reino do mistério, a abertura para uma luz que não a luz que permite a visão sensível. Não por acaso, João escreveu: E a luz resplandeceu nas trevas. (Jo 1:5)

sábado, 21 de fevereiro de 2015

De periferia em periferia

Henri Rousseau - House on the Outskirts of Paris (1902)

Os homens, levados pela vaidade e a frívola ilusão, julgam que o lugar que lhes cabe é sempre o central. E para chegar ao centro do mundo gastam a pouca energia que lhes cabe. O viandante há muito que tomou o caminho da periferia. Por vezes, entra numa casa e descansa, para logo retomar o caminho e, de periferia em periferia, seguir a voz que, na distância, o chama e o conduz para onde a frivolidade dos homens não se deixa arrastar.