terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O desejo do além

Paul Ackerman - L'au-delà est désirable

A crítica popular à crença no além esquece o facto desse além ser o objecto que move o desejo. Ao desejar qualquer coisa o homem põe diante de si, como objecto desejável, algo que está para além dele, uma transcendência. O além é o sinal da nossa impossibilidade de coincidirmos com o aqui e o agora factuais, com as condições que a existência terrena nos propõe. O além chama-nos e move-nos pela sua natureza desejável e que tem o poder de desencadear o desejo. Seria um equívoco encerrarmos o além num mero devaneio da imaginação, numa ilusão de óptica movida pelo medo.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Ardente obscuridade

Juan José Aquerreta - Ardente oscuridad (1991)

A noite escura e o amor ardente. Estes são os sinais de avanço na viagem. Que sinais anunciam ao viandante o progresso no caminho que é o seu? Quanto mais escura for a noite, quanto menor for a luz do mundo, e quanto mais ardente for o amor, então o viandante pode suspeitar que não se desviou do caminho.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Um lugar de solidão

Albano Vitturi - Gli eremiti di Faida (1934)

A nossa sociedade é fértil em contradições. Nenhuma outra terá exterminado com tanta determinação a possibilidade dos homens encontrarem um lugar de solidão, um eremitério onde se possam confrontar consigo e com a vida. Mas nenhuma outra terá precisado tanto que homens e mulheres se encontrem perante si próprios, se confrontem com a vida, tenham um lugar de solidão e abandono.

sábado, 17 de janeiro de 2015

A grande batalha

Yves Klein - La Grande Bataille (1961)

Tudo seria mais pacífico se, desde muito novos, os seres humanos aprendessem a travar a grande batalha. E contra quem travariam eles essa batalha? Contra as suas próprias ilusões, contra as crenças que os levam à convicção de que são deuses e que possuem uma vontade um poder absolutos. Não haverá batalha mais difícil de vencer do que aquela onde desafiamos as nossas ilusões. Elas resistem, enganam-nos, seduzem-nos. Desviam-nos sempre daquela voz que, no deserto, clama por nós.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Poemas do Viandante (492)

Ken Howard - Palazzo Michiel, Venice, January (1998)

492. os dias furtivos de janeiro

os dias furtivos de janeiro
avançam na escuridão

sem que um nome os leve
para dentro da noite

sem que um desejo os abra
dentro do coração

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Aqui e agora

Esteban Vicente - Aqui (1993)

Aqui e agora. A viagem espiritual é uma luta contra o estranhamento, contra aquilo que tomou o nome de alienação. Este estranhamento não é outra coisa senão o negar da presença, do estar plenamente atento ao aqui e ao agora do acontecer.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

À espera da serenidade

Ángel Mateo Charris - Abstracto II (1999)

A viagem tem o seu tempo de sábia placidez. O viandante senta-se na sua frágil embarcação e sente a calmaria do mar. Não é ainda a tempestade, aquela que se segue à bonança, que espera, mas a serenidade que a contemplação lhe pode trazer. Espera que uma revelação lhe permita continuar o seu caminho.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O nascimento da melancolia

Giorgio Chirico - Melancholy of a Beautiful Day (1913)

Esses dias belos, cuja beleza nos fascina e prende à aparência, são fonte de uma estranha melancolia. Não pela sua beleza efémera nem pela improdutividade que muitas vezes os acompanha. A melancolia nasce do fascínio com que eles desviam o espírito do seu caminho. Perdido na aparência, o espírito esquece a realidade, aquela que chama por ele e que ele aspira atingir. A melancolia nasce do esquecimento, mas de um esquecimento assombrado pela luz da reminiscência.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Haikai do Viandante (218)

Harald Sohlberg - Night (1904)

quando a noite desce
sobre a secura dos montes
tudo estremece

domingo, 11 de janeiro de 2015

Cuidar o jardim

Raoul Dufy - O jardim abandonado (1913)

De um ponto de vista racional, pode-se sempre pensar que a ideia do paraíso, do jardim do Éden, foi construída à imagem e semelhança dos jardins que homem teria já inventado para seu deleite na terra. A imaginação, porém, pode, com o poder arquetípico que a constitui, dizer o contrário. Todos os jardins humanos são uma cópia ou uma reminiscência do paraíso, dessa experiência originária que habita o fundo da espécie humana. Ao dizer isto, a imaginação está ainda a dizer outra coisa. Tendo o homem sido expulso, o jardim foi abandonado. E esta ideia traz uma injunção para cada homem sobre a terra. A vida, no seu significado último, não deveria ser outra coisa do que a viagem de retorno. O jardim precisa de ser cuidado.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Dentro do bosque

Ernst Ludwig Kirchner - Na orla do bosque (1920)

A vida dos homens decorre para além do bosque, no espaço civilizado sujeito às regras da sociabilidade humana. A vida espiritual, porém, implica um deixar a orla e adentrar-se no bosque, abandonando a sociedade e a civilização. Isso não significa a adopção de um estilo de vida incivilizado ou uma conduta insociável. Significa apenas que a vida do espírito se desenrola fora dos hábitos e das rotinas, no território onde, a cada momento, surge o inesperado que apela para o não pensado e o não dito.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Perder o norte

André Masson - Os pontos cardeais (1924)

Os pontos cardeais indicam-nos os sentidos fundamentais que podemos tomar na exploração do território. São um dispositivo de orientação na materialidade física do mundo. A viagem espiritual, porém, começa quando se abandona a segurança da orientação. No caminho para aquilo que chama o viandante, a rosa dos ventos ou a bússola não são dispositivos de ajuda. São entraves. A viagem começa quando os abandonamos e nos abrimos à solicitação trazida pelo acontecer. Há que perder o norte.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Uma nova inocência

Mère Geneviève Gallois - Adam et Eve chassés du paradis (1926)

Na narrativa de Adão e Eva, a expulsão do paraíso é vista como um castigo, um acontecimento negativo, algo que sucedeu devido à queda, à perda ingénua da inocência. Esta é, contudo, apenas uma parte da história. A expulsão do paraíso é o começo da viagem, a dolorosa procura de uma nova inocência, uma inocência que, abandonada a ingenuidade, se sabe e se quer inocente.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Poemas do Viandante (491)

Remedios Varo - Frío (1948)

491. os frios de janeiro erguem-se

os frios de janeiro erguem-se
sobre a terra

traçam ruas de gelo nos campos
abandonados

e semeiam a morte nos corações
baldios

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A música

Henri Matisse - La Musique (1939)

De todas as artes, a música será aquela cuja natureza espiritual é mais decisiva. Na música já se abandonou a forma e a figura presentes nas artes plásticas, já se deixou para trás o discurso composto por unidades discretas, as palavras, que segmentam a realidade. Na música há o mais puro fluir, como ela fosse o primeiro eco da voz de Deus, o primeiro revestimento que o Logos divino toma para se revelar aos homens. A música é o cume da montanha ao qual todo o viandante aspira a chegar para, de lá, lançar a vista para o além.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

A estrela da tarde

William Turner - A estrela vespertina (c. 1830)

No regime existencial que pertence ao homem não há luz que não contenha em si um traço de escuridão, não há trevas que não sejam pontuadas pela luz. Não está dentro das condições de possibilidade do homem suportar o absoluto, seja o da luz ou o das trevas. Quando o sol se põe e as trevas ameaçam tomar conta do mundo, o brilho da estrela da tarde recorda-nos que, para nós, as trevas não são absolutas nem eternas. A luz é ainda um princípio de esperança que, nos momentos mais negros, guia a viagem espiritual do homem.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Haikai do Viandante (217)

George Iness - Winter, Close of Day (1866)

dia de inverno
o sol resplandece na água
e tudo se cala

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O frio invernoso

George Wesley Bellows - A Morning Snow - Hudson River (1910)

Nos ciclos da vida espiritual não é importante apenas a sua natureza cíclica, o facto de uma estação antecipar já a próxima, como se a vida fosse uma deriva em espiral. Em cada estação - como nas estações da via crucis - há que permanecer na natureza que a constitui e abrir-se à experiência a que ela convoca. Também o frio invernoso faz parte do caminho do viandante, nessa aproximação infinita à voz que o chama.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Dentro da cidade

Egon Schiele - Cidade amarela (1914)

O deserto inóspito, a floresta húmida e secreta ou a montanha agreste foram, desde há muito, lugares onde viandantes de todas as épocas procuraram o caminho para a sua viagem espiritual. Entendeu-se isso, muitas vezes, como fuga mundi, como uma forma de fuga aos negócios mundanos e à vida na cidade. Mas para o viandante dos dias de hoje o deserto, a floresta e a montanha encontra-se também dentro da própria cidade e é lá que a aventura espiritual, para a qual foi convocado, terá de realizar-se.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Paraíso terrestre

Pierre Bonnard - Le paradis terrestre (1916-20)

Os séculos XIX e XX alimentaram o equívoco sonho de construir o paraíso na terra. Decepcionados com os resultados infernais obtidos, os homens abandonaram o projecto e declararam-no uma utopia. Esqueceram-se, todavia, de questionar se tinham escolhido os meios mais adequados para tão desmedido desiderato. E se o problema fosse não do projecto mas dos meios escolhidos para o realizar? E se o equívoco residisse na escolha do caminho e não na meta a alcançar?

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Inspirar e expirar

Antonio Tápies - Inspiração - Expiração (1997)

Os ciclos vitais não são apenas estratégias biológicas para manutenção no homem da vida animal. São também a base da vida social e da sua aventura espiritual. Ao momento da inspiração, da aquisição e da vinda do novo, corresponderá o momento da expiração, da purificação e do abandono daquilo que é já matéria morta. Inspirar e expirar são a autêntica regula da vida espiritual.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Haikai do Viandante (216)

JCM - Speculum (2008)

espelho de água
no verão lembra a viagem
luz sombra imagem

domingo, 28 de dezembro de 2014

Em cada amanhecer

Paul Delvaux - O amanhecer (1943)

Há para o espírito do homem uma clara vantagem na concepção cíclica do tempo. A concepção linear da duração arrasta com ela um contínuo sentimento de perda, de perda irremediável. O futuro não é uma conquista, mas a perda definitiva do passado e do presente. Mas, se pensarmos o tempo de forma cíclica, descobrimos no contínuo retorno do mesmo um crescimento e um aumento do vigor espiritual. Sabemos que após cada noite - por fria e escura que seja - virá a irrupção súbita da luz ao amanhecer. E se esse amanhecer está já tingido pela luz que diminui até que venha de novo a noite, o viandante sabe que depois virá uma nova manhã, mais rica, mais densa e mais plena de sentido que a anterior.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Abrir brechas

Lucio Fontana - Concetto Spaziale (1960)

Pensa-se muitas vezes que a vida espiritual é o cumprimento de regras, como se o essencial da existência humana fosse a normalidade moral, essa redução da vitalidade ao preconceito social, à ideia feita, ao hábito comunitário. A vida do espírito, contudo, está muito para além disso vive noutros espaços que a moralidade não consegue frequentar. A sua natureza não é a da regra, mas de abertura de brechas por onde a luz possa passar e iluminar o caminho do viandante.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Natividade mística

Sandro Botticelli - The Mystical Nativity (1500-01)

E se as narrativas sobre o nascimento do Filho de Deus em Belém não tiverem qualquer correspondência factual, se pertencerem apenas ao domínio do mito e não da história, serão elas falsas? Depende do regime de veridicção adoptado. Se for um regime em que a verdade depende da correspondência do discurso aos factos, então, no caso de serem não históricas, serão falsas. Mas se o regime de veridicção for outro, se a verdade não for uma mera correspondência entre factualidade e discurso mas uma realização de uma possibilidade inscrita no real, então as narrativas da natividade são a mais pura das verdades, aquela a que todos os homens são chamados a realizar na sua vida. A natividade do filho de Deus não é um mero facto, mas a possibilidade que, segundo o Cristianismo, os filhos de Deus trazem em si mesmos. Uma natividade mística.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Poemas do Viandante (490)

Jim Dine - A Woodcut in the Snow (1983)

490. os sedimentos deixados

os sedimentos deixados
pela vida

são como o sangue que corre
no coração

chegam e partem ao ritmo
da pulsação

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O espaço do silêncio

Fernando Roscubas y Vicente Roscubas - Espaços de silêncio (1994)

Os lugares de silêncio, nos dias de hoje, são pequenas bolhas na superfície da terra. O ruído, nas suas múltiplas formas, tomou conta do mundo e impõe aos homens - a alguns deles, pelo menos - uma terrível provação, a de criarem, através de uma dura ascese, um espaço de silêncio dentro do ruído geral. Nele, esperam ouvir a voz silenciosa que por eles chama.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Haikai do Viandante (215)

JCM - Heimat (2014)

deslizam as águas
esquecidas da fria fonte
luz no horizonte

sábado, 20 de dezembro de 2014

Uma casa em ruínas

JCM - Ruínas (2014)

Que mais precisa o viandante para abrigo do que uma casa em ruínas? Ele sabe que todos os abrigos são passageiros e que o efémero que se manifesta numa ruína opera também naquilo que é novo. Cada abrigo é importante não porque se permanece nele, mas porque há que deixá-lo para trás. 

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Um caminho de vida

Salvador Dali - Cavaleiros do Apocalipse (1970)

Há múltiplas formas de pensar a simbologia dos quatro cavaleiros e respectivos cavalos que surgem no Apocalipse de João. Os símbolos são verdadeiros depósitos de sentido, permitindo encontrar neles significações contraditórias. A lógica que os rege, se de lógica podemos falar, não se coaduna com a interdição da contradição e com o terceiro excluído. No símbolo, identidade e contradição coabitam e o terceiro está incluído. Podemos ver nesses símbolos do texto de João a profecia de terríveis desgraças, mas não será desapropriado de compreender neles uma indicação do caminho espiritual, marcos na viagem do viandante que procura aquilo que por ele chama, aquilo que, numa outra linguagem, se poderá dizer o caminho da vida feliz.