Alphonse Osbert - Serenidade (1901)
Se interrogarmos o dicionário sobre o sentido do termo serenidade, ele, como é normal num qualquer dicionário, envia-nos para uma resposta sempre decepcionante. Serenidade é a qualidade ou o estado de estar sereno. Sereno, por seu turno, é um adjectivo que qualifica algo ou alguém como estando calmo, sossegado, tranquilo, ameno, feliz. Perante tão frugal explicação do significado de serenidade, podemos perguntar como foi possível que Martin Heidegger, a dado momento do desenvolvimento do seu percurso filosófico, tivesse posto a serenidade (Gelassenheit) como a essência do pensamento.
A essência de uma coisa é aquilo que, nessa coisa, faz com que ela seja o que é e não seja outra coisa qualquer. Isto significa que o pensamento é pensamento porque ele é a emanação da serenidade. Só a partir do estado de serenidade podemos pensar. Na formulação heideggeriana há, porém, qualquer coisa de perturbante. O que desencadeia o pensamento não é a dúvida ou o espanto, sintomas de inquietação e desassossego, mas o seu contrário.
A explicação desta posição reside em Heidegger ter abandonado a ideia de um pensamento representativo. Não é já a preocupação com a determinação de uma representação da realidade que se ajuste a esta mesma realidade, mas antes a serenidade de quem escuta o ser porque lhe pertence. Em vez de um pensamento representativo, fundado em conceitos abstractos que procuram a adequar-se ao real, temos um pensamento que medita a partir da escuta daquilo que é.
É nesta meditação que a filosofia se aproxima da poesia e constituem ambas um exercício de escuta e de atenção ao ser. Para escutarmos o rumor do ser, para estarmos atentos à epifania do ser, é necessário que deixemos para trás a inquietação, o desassossego, a perturbação mundana. A serenidade é, desse modo, a condição de possibilidade de toda a verdadeira meditação, seja ela filosófica ou poética. É na serenidade que a meditação filosófica ascende ao estatuto de oração, de uma oração de graças pelo estar na existência e pela escuta do rumor misterioso do ser, que está muito para além das nossas representações da realidade.