segunda-feira, 11 de março de 2013

O prodígio e a evidência

Giovanni Toscani - L'Incrédulité de saint Thomas

Naquele tempo, Jesus saiu da Samaria e foi para a Galileia. Ele mesmo tinha declarado que um profeta não é estimado na sua própria terra. No entanto, quando chegou à Galileia, os galileus receberam-no bem, por terem visto o que fizera em Jerusalém durante a festa; pois eles também tinham ido à festa. Veio, pois, novamente a Caná da Galileia, onde tinha convertido a água em vinho. Ora havia em Cafarnaum um funcionário real que tinha o filho doente. Quando ouviu dizer que Jesus vinha da Judeia para a Galileia, foi ter com Ele e pediu-lhe que descesse até lá para lhe curar o filho, que estava a morrer. Então Jesus disse-lhe: «Se não virdes sinais extraordinários e prodígios, não acreditais.» Respondeu-lhe o funcionário real: «Senhor, desce até lá, antes que o meu filho morra.» Disse-lhe Jesus: «Vai, que o teu filho está salvo.» O homem acreditou nas palavras que Jesus lhe disse e pôs-se a caminho. Enquanto ia descendo, os criados vieram ao seu encontro, dizendo: «O teu filho está salvo.» Perguntou-lhes, então, a que horas ele se tinha sentido melhor. Responderam: «A febre deixou-o há pouco, depois do meio-dia.» O pai viu, então, que tinha sido exactamente àquela hora que Jesus lhe dissera: «O teu filho está salvo». E acreditou ele e todos os da sua casa. Jesus realizou este segundo sinal miraculoso ao ir da Judeia para a Galileia. (João 4,43-54) [Comentário de Anastácio de Antioquia aqui]

O que significam esses sinais extraordinários e prodígios? Objectivamente, podem sobre eles ser dadas diversas explicações. Uma explicação negativa, afirmando que não existem, que a legislação que rege a natureza não permite tal tipo de fenómenos. As explicações positivas têm um espectro mais alargado. Uma primeira dirá que a natureza não se rege por leis deterministas, que estas não passam de um hábito psicológico, como o pensou David Hume, fundado na constância dos fenómenos e na expectativa das pessoas, e por isso é possível que certas acções interfiram no curso do mundo que o hábito nos faz pensar como pré-determinado. Uma segunda dirá que o nosso estado do conhecimento é ainda incipiente e que estes prodígios, não sendo falsificações da realidade, poderão, mais tarde ou mais cedo, ser cientificamente explicados. Por fim, uma terceira explicação dirá que há uma legislação determinada da natureza ou, pelo menos, um curso regular dos acontecimentos e que, em certas ocasiões, por intervenção divina podem ser suspensos para, de imediato, retornar às suas formas habituais.

O texto contudo não abre tanto para uma discussão sobre os milagres mas para as condições subjectivas da fé. O que é, de facto, questionado é a necessidade de fundamentar a fé numa evidência dada pelo prodígio. Isto significa, em primeiro lugar, que existia um cepticismo crítico e racionalizante, o qual obstruía a crença. Em segundo lugar, porém e ao contrário dos dias de hoje, esse cepticismo não é encarado como sendo o natural do espírito humano. As palavras proferidas por Cristo – Se não virdes sinais extraordinários e prodígios, não acreditais – são ditas em tom de censura, como se a essência do próprio espírito fosse o assentimento espontâneo e imediato à Verdade que se revelava.

O texto de João abre assim para uma reflexão sobre a evidência da fé e, como corolário, sobre a perda dessa evidência. Essa perda, porém, não significa que alguma coisa se tivesse alterado radicalmente no curso da história humana, como se houvesse um momento histórico em que o conteúdo da fé fosse transparente a uma consciência mais ou menos inocente. Subjacente ao texto parece estar antes uma outra perspectiva. Em cada homem, a natureza mais íntima do seu espírito conduzi-lo-ia a uma fé que não necessitaria de evidências exteriores, de prodígios e de sinais extraordinários. Essa intimidade consigo mesmo perde-se ou nunca se chega a alcançar e, movido pela perda, o homem torna-se céptico e necessita de sinais exteriores.

domingo, 10 de março de 2013

Sonetos do Viandante (16)

Claude Monet - Tempestad en Belle-Île (1886)

16. Sigo a sombra do relâmpago

Sigo a sombra do relâmpago
e oiço o cântico das aves.
Caminho estrada fora
sem destino e sem imagem.

Espero a voz da floresta,
o enigma da primavera,
o canto de uma sereia,
a esperança que me resta.

E se chegas com o vento
ou trazes as grandes chuvas,
deixo o tempo vagaroso

correr entre as minhas mãos.
Nelas das tuas haverá
a sombra e o frio silêncio.

Comentário ao evangelho do dia

Considerando que o texto de Lucas proposto para hoje é o mesmo do dia 2 de Março, remete-se para o comentário efectuado nesse dia (aqui). Remete-se também para o comentário de Jean-Marie Vianney, o Cura d'Ars, aqui.

sábado, 9 de março de 2013

Autenticidade e justificação

Eugène Leroy - Adão e Eva (1968)

Naquele tempo, Jesus disse também a seguinte parábola, a respeito de alguns que confiavam muito em si mesmos, tendo-se por justos e desprezando os demais: «Dois homens subiram ao templo para orar: um era fariseu e o outro, cobrador de impostos. O fariseu, de pé, fazia interiormente esta oração: 'Ó Deus, dou-te graças por não ser como o resto dos homens, que são ladrões, injustos, adúlteros; nem como este cobrador de impostos. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de tudo quanto possuo.' O cobrador de impostos, mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu; mas batia no peito, dizendo: 'Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.' Digo-vos: Este voltou justificado para sua casa, e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado.» (Lucas 18,9-14) [Comentário de Teresinha do Menino Jesus aqui]


A parábola enquadra-se numa dialéctica corrente dos discursos de Cristo, a dialéctica exaltação / humilhação. Esta dialéctica é um dos tópicos essenciais e, por isso, um dos que merece uma maior atenção e meditação. Deixemo-la, porém, para outra ocasião e concentremo-nos no núcleo do texto de Lucas. Quem voltará, da oração, justificado para sua casa? Valerá a pena perceber como se chega, na história lexical, ao termo justificado. A palavra portuguesa é a tradução da latina iustificatus, a qual traduz, do texto grego recebido, δεδικαιωμένος (do verbo δικαιóω). A palavra portuguesa tem uma carga semântica que necessita de esclarecimento.

Justificar significa apresentar o motivo ou a razão de um dado comportamento ou proposição. É uma estratégia de fundamentação e, ao mesmo tempo, de explicação. Significa, também, legitimar e, ainda, desculpar. Esta carga semântica complexa não deve ser deixada de lado pela opção de justificado como desculpado ou perdoado. Retome-se o vocábulo grego δεδικαιóωμένος. O que nos ensina ele? Ensina que justificar é tornar justo ou inocente, mas também livre. A humilhação do cobrador de impostos libertou-o, tornou-o justo, permitiu-lhe uma segunda inocência. A sua conduta errante, de pecador, não está legitimada, como se pode pensar a partir do uso da expressão portuguesa. Ela é ilegítima e é dessa ilegitimidade que ele é libertado e tornado inocente.

A oração do cobrador de impostos pode ainda ligar-se a uma ideia presente no vocábulo português justificado. Que diz ele? Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador. Pede piedade e reconhece o fundamento, aquilo que explica, a sua conduta ilegítima. Um reconhecimento não meramente ético e moral mas também ontológico, um mostrar que tem consciência da sua própria fragilidade, da sua natureza falível, bem ao contrário da consciência farisaica. Este reconhecimento é um momento de manifestação da verdade: sou um homem frágil e falível, por isso clamo piedade. Esta verdade objectiva – a da falibilidade do homem – quando é reconhecida pela própria consciência torna-se autenticidade, e é esta que merece a justificação, o devir justo, a libertação e o tornar-se inocente.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Um novo acto sacrificial

Max Klinger - Sacrifício

Naquele tempo, aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?» Jesus respondeu: «O primeiro é: Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior que estes.» O escriba disse-lhe: «Muito bem, Mestre, com razão disseste que Ele é o único e não existe outro além dele; e amá-lo com todo o coração, com todo o entendimento, com todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo vale mais do que todos os holocaustos e todos os sacrifícios.» Vendo que ele respondera com sabedoria, Jesus disse: «Não estás longe do Reino de Deus.» E ninguém mais ousava interrogá-lo. (Marcos 12,28b-34) [Comentário de Teresa de Calcutá aqui]

Uma das cifras possíveis para a hermenêutica deste texto de Marcos reside nas palavras holocaustos e sacrifícios, proferidas pelo escriba. Holocaustos e sacrifícios eram elementos estruturais das várias religiões. O sangue da vítima emissária era visto como tendo poder para aplacar a fúria divina, isto é, para aplacar uma dada crise surgida na sociedade dos homens. Cristo faz notar que o essencial da religião, porém, é o amor a Deus e ao próximo como a si mesmo. E é este duplo amor que é reconhecido como tendo mais valor do que qualquer holocausto ou sacrifício.

Sublinha-se assim um processo de transformação crítica da praxis religiosa. A imolação da vítima é substituída pelo amor. A aniquilação do valor dos sacrifícios de sangue estava praticamente consumada. Faltava o acto último de abolição dessas práticas sacrificiais, o sacrifício do próprio Cristo. No entanto, a abolição do sacrifício de sangue não significa a pura e simples abolição de qualquer sacrifício. O texto, tomado na completude do diálogo entre Jesus e o escriba, deixa compreender uma outra forma de sacrifício, o amor.

O amor a Deus, para o qual se devem mobilizar todas as faculdade do homem (o coração, a alma, o entendimento e a vontade), é ainda um acto sacrificial e purificador dessas faculdades. Por norma, o homem deixa-se arrastar para a errância fazendo um uso limitado desses poderes, concentrando-os no acessório, no privado e naquilo que o aliena. O amor incondicional a Deus é o mais estranho e exigentes dos sacrifícios, aquele que contraria as nossas pulsões para o amor próprio.

Também o amor ao próximo contradiz a tendência egoísta presente em cada um de nós. Nos grupos humanos, a rivalidade entre os particulares desencadeava crises que apenas o sacrifício, muitas vezes de uma vítima humana, punha cobro. O texto de Marcos assinala uma transformação da função sacrificial. De resolução de uma crise, o sacrifício, fundado no amor a Deus e ao próximo, torna-se prevenção de conflitos, abertura ao outro e à vida em comum.

Haikai do Viandante (129)

Piet Mondrian - Along the Amstel (1903)

Um rio no silêncio.
Nuvens, árvores e sombras.
A luz do prodígio.