Santo Agostinho
Quem se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo, assegura para si a vida eterna (Jo 12,25).
Este versículo do Evangelho de João é composto por dois pares de contrários. O amor de si e o desprezo de si, por um lado; este mundo e a vida eterna, por outro. Esta tradução sublinha, através do si (self) uma conexão com a questão da identidade. Poder-se-ia entender a identidade como uma construção social, uma máscara com que nos apresentamos no mundo, nesse espaço-tempo - um verdadeiro cenário - onde representamos um conjunto de papéis. A palavra de João diria, então, que aquele que se confunde com a sua máscara social fica preso no espaço e no tempo e não acede aquilo que está para lá de todo o espaço e de todo o tempo, a eternidade.
A questão, porém, toma outra coloração se escolhermos outra tradução:
Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo odeia a sua vida, guarda-la-á para a vida eterna (Jo 12,25).
Esta tradução acentua não o foco identitário e social mas a dimensão biológica. Mas esta dimensão biológica é apenas o primeiro momento. Amar a vida biológica - talvez por extensão a vida social - acabará por a perder, coisa que acontece a todas as vidas no sentido biológico. Mas o ódio, no espaço e no tempo mundanos, a essa mesma vida limitada (a do bios e a do socius) é o princípio de uma transmutação da própria vida que lhe permite tornar-se eterna, isto é, deixar de ser uma mera vida biológica ou mesmo social.
As duas traduções acabam por salientar aspectos diferentes, embora complementares, do caminho para a eternidade. Mas para o leitor que não domina a língua original e o ambiente semântico onde foi produzido o Evangelho de João aquilo que se torna mais problemático está noutro lado. Desprezo de si ou ódio à sua vida? Qual é o caminho para a eternidade? Uma coisa é o desprezo de uma identidade falsa e ilusória. Outra, o ódio a uma vida da qual não somos autores. [Retomar-se-á esta questão numa das próximas postagens.]