domingo, 25 de março de 2012

Do desprezo de si e do ódio à vida


Santo Agostinho

Quem se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo, assegura para si a vida eterna (Jo 12,25).

Este versículo do Evangelho de João é composto por dois pares de contrários. O amor de si e o desprezo de si, por um lado; este mundo e a vida eterna, por outro. Esta tradução sublinha, através do si (self) uma conexão com a questão da identidade. Poder-se-ia entender a identidade como uma construção social, uma máscara com que nos apresentamos no mundo, nesse espaço-tempo - um verdadeiro cenário - onde representamos um conjunto de papéis. A palavra de João diria, então, que aquele que se confunde com a sua máscara social fica preso no espaço e no tempo e não acede aquilo que está para lá de todo o espaço e de todo o tempo, a eternidade.

A questão, porém, toma outra coloração se escolhermos outra tradução:

Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo odeia a sua vida, guarda-la-á para a vida eterna (Jo 12,25).

Esta tradução acentua não o foco identitário e social mas a dimensão biológica. Mas esta dimensão biológica é apenas o primeiro momento. Amar a vida biológica - talvez por extensão a vida social - acabará por a perder, coisa que acontece a todas as vidas no sentido biológico. Mas o ódio, no espaço e no tempo mundanos, a essa mesma vida limitada (a do bios e a do socius) é o princípio de uma transmutação da própria vida que lhe permite tornar-se eterna, isto é, deixar de ser uma mera vida biológica ou mesmo social.

As duas traduções acabam por salientar aspectos diferentes, embora complementares, do caminho para a eternidade. Mas para o leitor que não domina a língua original e o ambiente semântico onde foi produzido o Evangelho de João aquilo que se torna mais problemático está noutro lado. Desprezo de si ou ódio à sua vida? Qual é o caminho para a eternidade? Uma coisa é o desprezo de uma identidade falsa e ilusória. Outra, o ódio a uma vida da qual não somos autores. [Retomar-se-á esta questão numa das próximas postagens.]

sábado, 24 de março de 2012

Haikai do Viandante (58)


pássaro no ramo
um traço de azul poisado
canta todo o ano

quinta-feira, 22 de março de 2012

Poemas do Viandante (253)

Pissaro- Norwood

253. PISSARO, NORWOOD

a aldeia que te deixou
casas e fumo
a árvore despida
traços de neve
na glória do inverno

do tempo que passou
não vale a pena 
a queixa
nem a memória presa
aos restos da tarde

segue estrada fora
o mundo espera-te 
sonho transfigurado
fumo neve fria
eterno estio por vir

quarta-feira, 21 de março de 2012

Haikai do Viandante (57)


montanha sagrada
sobre as águas e as terras
um traço de nada

Poemas do Viandante (252)

Monet - Impression

252 - MONET, IMPRESSION

algures habita o que esperamos
o barqueiro de remo decidido
aproxima-se da margem
olhos presos na água
e no coração a voz
de quem por ele chama

sábado, 17 de março de 2012

Haikai do Viandante (56)


noite, luz, estrelas,
no jardim me sento para
na escuridão vê-las

sexta-feira, 16 de março de 2012

Poemas do Viandante (251)

Sisley - Les petits prés au printemps

251. SISLEY, LES PETITS PRÉS AU PRINTEMPS

pequenos prados
trazidos pela luz
restos de água
testemunhas de verde
a dançar sob os pés

o tempo ávido
chama por ti

caminhas leve
e absorta
pisas a erva
a memória vazia
algum amor para sempre
perdido

quarta-feira, 14 de março de 2012

Haikai do Viandante (55)

daqui

um sol amarelo
irrompe sobre o arvoredo
violento e belo

terça-feira, 13 de março de 2012

Poemas do Viandante (250)

Degas - Woman Combing her Hair

 250. DEGAS, WOMAN COMBING HER HAIR

o dia chegou
e o corpo renascido
poisa tranquilo
na orla da manhã

os cabelos
floresta de cobre
acordam sonâmbulos
no gesto vazio
preso em tua mão

domingo, 11 de março de 2012

Haikai do Viandante (54)


velha cerejeira,
onde o corvo poisado
lembra uma bandeira.

sábado, 10 de março de 2012

Poemas do Viandante (249)

Pissarro - Boulevard de Montmartre

249. PISSARRO, BOULEVARD DE MONTMARTRE

luz noite a traz 
incenso para o céu
cai sobre a terra
abre cavernas 
escuridão na avenida

e tu passas
rasto de fulgor
árvore sem ramos
presa na luz -
sombra pura e delida


sexta-feira, 9 de março de 2012

Meditação

Caravaggio - S. Jerónimo em meditação

A meditação é muitas vezes compreendida como rememoração e retorno a si. Mas se ela for apenas isto, não passará de mero solipsismo mesclado com o mais puro exercício narcísico. Voltar a si, à sua interioridade, não é voltar-se para um espelho onde o ego se contempla a si e se compraz nessa contemplação. Meditar é, fundamentalmente, perder-se não em si mas de si. Este perder-se é um mergulhar no vazio e, ao mesmo tempo, um tornar-se vazio, para que algo que nos transcende absolutamente possa vir e demorar-se aí como se estivesse em sua casa. Meditar é tornar vazia a casa do Senhor. Mas meditar é também um ir e estar no mundo, uma presença constante onde se dá testemunho dessa Outra presença que nos permite estar presentes. Medito ao escrever isto, medito quando faço um poema, medito quando falo com alguém ou caminho na rua, medito nas grandes acções e nos pequenos actos. Talvez a meditação não seja algo que nós fazemos, mas o modo como habitamos neste mundo, o modo como existimos. Meditar é a própria essência da existência humana.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Poemas do Viandante (248)

Manet - The Garden at Bellevue

248. MANET, THE GARDEN AT BELLEVUE

árvore pura sem sombra
eixo do mundo
onde o teu corpo 
volteia gira rodopia
na turbulência 
deste olhar

imóvel esperas o vento
e a cada folha que cai
acendem-se na casa 
musgos e sedas
uma fogueira -
desejo a arder
no centro do furacão

quarta-feira, 7 de março de 2012

Haikai do Viandante (53)


Velho paraíso,
guardo-te entre as coisas
de que mais preciso.

terça-feira, 6 de março de 2012

Haikai do Viandante (52)


das ondas suspenso,
nem barco nem caravela,
na morte me penso.

domingo, 4 de março de 2012

Poemas do Viandante (247)

Monet - Veneza

247. MONET, VENEZA

a cidade 
um incêndio
restos de argila
e calcário
cenário de papel 
e seda a arder 
na voragem
da água

Haikai do Viandante (51)


Um traço sombrio,
árvores, folhas, promessas
de luz e um rio.

sábado, 3 de março de 2012

Poemas do Viandante (246)

Cézanne - Gardanne

246. CÉZANNE, GARDANNE

havia um segredo
no segredo
daquelas casas
uma palavra por dizer
a flor bravia
e solitária
com que partias
se me vinhas ver

sexta-feira, 2 de março de 2012

Poemas do Viandante (245)

Renoir, Boating on the Seine

245. RENOIR, BOATING ON THE SEINE

caminho pela margem
e nas águas sei
a cor dos teus olhos
ao abrirem-se para os meus

barco incendiado
a tarde chega
invade o rio 
ilumina-te 
com o cálice de luz

tudo em ti treme
mãos ansiosas
coração inquieto
a boca incerta
na vastidão das horas

quinta-feira, 1 de março de 2012

Haikai do Viandante (50)


o fim da jornada
começa quando o dia nasce
pela madrugada

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (49)


a noite sublime
sob o império do luar
esmaga e oprime

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Da dor e do espírito

Se o corpo cede, o espírito, solidário, torna-se frágil e impotente. Sob o efeito de uma virose, as dores do corpo invadem a consciência, ocupam todo o horizonte e tudo se torna nebuloso. Como pensar claro e distinto? Como afundar-se no esquecimento de si? A dor, pequena que seja, é sempre um exercício de narcisismo, um ver-se contínuo ao espelho, agora um espelho deformado que devolve uma imagem lamentável e lamentosa de si mesmo. Talvez um contínuo exercício da dor permita a alguns esquecê-la e deixar o espírito livre da submissão às desventuras da carne. Mas quão longe se teria de ir no caminho para conseguir tal independência espiritual? Talvez a dor não seja o caminho para a libertação do espírito, talvez a dor seja ainda um exercício de submissão do espírito ao império material do corpo.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (48)


árvores despidas,
inverno que traz o homem
frio e de mãos caídas.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Épocas de dissipação

Há épocas de pura dissipação. O espírito vagueia incapaz de tomar um rumo, e o corpo fica prisioneiro desse espírito débil e inconstante. Tudo se dissolve e nada de produtivo, seja em que âmbito for, é gerado. O espírito parece perdido no espelho, num exercício de narcisismo sem fim. Depois, mais uma vez, há que voltar para a pobreza essencial, para o vazio de si, e esperar que uma graça devolva espírito e corpo à vida. Esse exercício de humildade, muitas vezes, só parece possível por um longo período de humilhação, no qual nos comprazemos nas pequenas ilusões que capturam a consciência e aniquilam a atenção ao essencial.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Poemas do Viandante (244)



244. CINZAS PÓ E LAMA

de onde veio esta ânsia
desejo animal
de vida à vida
acrescer
numa angústia de infinito
num saber sem saber
e esperar
o corpo
pó no pó da terra
e a vida no horizonte
onde os vivos
não vivem
são apenas cinzas pó e lama

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (47)


ao entardecer
o barco pára e espera
o sol vai morrer

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Poemas do Viandante (243)




243. TIRÉSIAS

que trazes tu agora
na tua cegueira?
ah esses mistérios
e a sombra que a vida
sobre eles derrama
o olhar vazio
a palavra sábia
no terror das trevas

o dardo atirado
aos olhos de édipo
o infeliz senhor
a rainha morta
o cruel destino
dos filhos traçado
pela dor e o sangue

tanta luz contigo
trazes e derramas
sobre a vida frágil
e inquieta dos homens

que escondes agora?
que dor sabes tu
vive no horizonte?
que hora que dia
sobre nós cairá
a sabedoria
nascida na luz
terrível e opaca
de tão cruel olhar?

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

De Eros e do Espírito

Van Dick, Eros e Psyche

Tradicionalmente, a paixão erótica é observada como inimiga da experiência espiritual, como um obstáculo ao caminho que cabe aos viandantes. No entanto, é possível que o problema não esteja em Eros, no amor erótico, mas no pathos, no estado de captura e de cativeiro em que os amantes permanecem presos pela paixão, pelo estado de passividade a que ficam sujeitos. Essa passividade é o contrário da livre actividade do espírito, aquele que sopra onde quer. A passividade da paixão impede que os amantes percebam a própria experiência erótica para além da corporalidade e da materialidade dada pela sensibilidade. A generalidade dos que se amam aproximam-se, num primeiro momento, por uma afecção física. Um corpo é tocado por outro corpo, em congruência com os desígnios biológicos da espécie. Raramente, este patamar é ultrapassado. Daí, por exemplo, a moralização da sexualidade feita pelas religiões, concomitante à sua sacralização. No entanto, não é um destino que o amor erótico fique encerrado na dimensão da passividade passional, passe a redundância. Ele pode ser uma via de acesso à experiência espiritual, à quebra da pura imanência dos sujeitos, à experiência da transcendência.

E a experiência contrária? Será possível que aqueles que se atraíram, numa primeira hora, pelo espírito e façam a experiência de uma comunhão espiritual e da transcendência materializem esse seu amor no amor erótico, na experiência dos corpos? Caberia interrogar se esses corpos são corpos idênticos aos daqueles que apenas vivem da atracção física. A perspectiva de quem olha não alterá a natureza daquilo que é olhado? A erotização do espírito poderá ser vista como uma queda, mas também pode ser compreendida como a descida do espírito sobre a carne e um processo de espiritualização desta. Desse ponto de vista, o amor erótico será assumido, à partida, como fazendo parte de uma experiência global dos estados múltiplos do ser, onde o perigo de os amantes ficarem encerrados na paixão e na passividade será muito menor do que no primeiro caso. Tudo, no amor, faria então parte do caminho do espírito. Mais, a própria cisão entre corpo e espírito perderia sentido, não havendo mais que um ser que passa por múltiplos estados existenciais.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Poemas do Viandante (242)


242. NOITE DE INVERNO

a noite de inverno
desliza tranquila
nas rodas do mundo

o grito do corvo
acende o mar
de estrelas no céu

e no frio da casa
ouve-se cantar
o fantasma pálido
de quem já morreu

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (46)


Silêncio no mundo;
e a casa ergue-se inteira
no lago sem fundo.