quarta-feira, 6 de abril de 2016

Poemas do Viandante (536)

Ellsworth Kelly - Black, White and Silver (1952)

536. preto, branco e prata

abre-se o branco
na névoa
nebulosa e
o preto é
a pedra 
que empresta
à luz
o fervor
da prata

terça-feira, 5 de abril de 2016

A queda

Antonio Tápies - A Queda (1982)

Podemos ver no mito da queda de Adão e Eva uma explicação simbólica para a nossa finitude. Essa visão inscreve-se ainda numa lógica de racionalização pré-científica da vida humana, um momento em que as faculdades humanas ganham força para se emanciparem e encontrarem explicações racionais. Por exemplo, o criacionismo bíblico seria a ante-câmara da teoria da evolução darwiniana. Do ponto de vista espiritual, contudo, isso é irrelevante. A queda é antes a experiência contínua de um espírito dilacerado entre o seu desejo do alto, do que é elevado, e a força da gravidade que o empurra para o que é baixo e degradante. A queda é o elemento central de toda a vida espiritual.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

A linha do horizonte

Manuel Hernández Mompó - Gente buscando horizonte (1971)

A linha do horizonte circunscreve um espaço de percepção. O que está para além dela deixa de estar ao alcance da visão.Também a vida espiritual dos homens - nas suas diversas manifestações - precisa de uma linha do horizonte. Para quê? Sem linha do horizonte o espírito singular perde-se. A linha do horizonte permite balizar a actividade espiritual do homem, mas não só. A linha do horizonte é aquilo que o homem, na sua aventura espiritual, vai tentar fazer recuar para, assim, alargar o seu campo de experiência. A vida espiritual é o exercício de tornar, através do recuo do horizonte, o além mais próximo do aqui e do agora.

domingo, 3 de abril de 2016

Construções espácio-temporais

Theo van Doesburg - Construcción espaciotemporal II (1923)

Também a vida espiritual é uma construção espácio-temporal. Rasga um caminho na terra ao ritmo do tempo. Não se trata, contudo, do espaço exterior captado tridimensionalmente pelos sentidos nem do tempo cronológico. O tempo é o tempo oportuno, o kairós, e o espaço é aquele que, interior e exteriormente, se traça entre as diversas manifestações desse tempo oportuno, o caminho que torna a vida uma resposta aos desafios que se manifestam segundo o Kairós.

sábado, 2 de abril de 2016

Poemas do Viandante (535)

Jesús María Cormán - 6.6 Richter Scale (2001)

535. a escala de richter

a escala de richter
um segredo
balança 
na terra
o peso de
um dedo
que a abre
e logo logo
a encerra

sexta-feira, 1 de abril de 2016

A mulher e a ave

Pierre Puvis de Chavannes - Le Pigeon (1871)

Eu sou o pássaro que seguro contra o peito e trago em mim o desejo incendiado do voo, o vício impenitente de deixar a terra e elevar-me, como um anjo, aos céus, para, livre da gravidade, poder seguir o caminho no silêncio das alturas. Eu sou a pomba que me toca o seio. No desconcerto de sentir-se presa, a ave funde-se lentamente em mim. Sinto as suas penas na minha pele, o seu coração, vibrátil e ansioso, no meu. Olho o sol e um pássaro terrível chama-me. Ergo um braço, depois outro, e tudo em mim é leveza, ausência de peso. A cidade resplandece ao longe e o sol banha-me o corpo, um corpo tão branco e tão leve. Eu sou a pomba que a mulher segura contra o peito e voo, na liberdade dos céus, no seu corpo alado e quente.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Haikai do Viandante (279)

Benvenuto Benvenuti - Inverno - Mattina (1905)

as manhãs de inverno
descem sobre os ciprestes
fogo frio na terra

quarta-feira, 30 de março de 2016

Para lá dos manifestos

Boris Kustodiev - Reading the Manifesto (1909)

A vida do espírito começa para lá de todos os manifestos. Um manifesto é um exercício exacerbado de ruído, a concentração de desejos e ilusões. A vida do espírito brota do silêncio, da solidão, da pura presença perante aquilo que é. O manifesto dirige-se ao rebanho e é sempre a afirmação do poder, ou da sua ânsia, de um pastor. A vida do espírito repousa na singularidade de cada um, quanto muito no encontro de duas singularidades. Nela, não há lugar para manifestos.

terça-feira, 29 de março de 2016

Poemas do Viandante (534)

Edna Araraquara - Amendoeira

534. da brancura da flor

na brancura da flor
eleva-se um
aroma
paira 
na sombra
trémula
de uma pétala
coberta de luz
coberta de assombro

segunda-feira, 28 de março de 2016

Uma dança infinita

Cruzeiro Seixas - Dança Infinita (2007)

Propulsionado pela música, aquele que dança enfrenta o império da gravidade e eleva-se, por instantes, acima da terra, como se do alto uma voz o chamasse. A gravidade devolve-o ao chão, mas a música, a voz que vem do alto, não pára de chamar. E, mais uma vez, o corpo ergue-se e enfrenta aquilo que o arrasta para baixo numa ânsia infinita de responder ao chamamento. A vida do espírito não é outra coisa senão uma dança infinita.