sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (528)

Caspar David Friedrich - Winter Landscape with Church (1811)

528. Na paisagem

Na paisagem
invernosa
descubro
a velha cruz
que na terra
fez cair
como neve
uma mancha
pura de luz.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Uma mesma realidade

Lima de Freitas - O Contemplador de Mundos (1997)

Um dos passos fundamentais na vida do espírito é a compreensão do equívoco que separa contemplador e coisa contemplada. Esta dualidade funda-se na que opõe produtor e contemplador. Na verdade, em qualquer área da vida do espírito, aquele que produz, aquele contempla e a coisa contemplada são uma mesma e única realidade, fruto do acto de produção que é ao mesmo tempo um acto de contemplação ou vice-versa.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Confronto entre a vida e a vida

Artur Bual - Pietá

O filho morto nos braços da Virgem - essa eterna cena que dá pelo nome de Pietá - deixa-se captar, na pintura de Artur Bual, em toda a complexidade que ela contém. Não se trata apenas da dor humana sentida pela mãe que perde o filho, mas da situação equívoca onde esse filho se encontra. Essa equivocidade é idêntica à da semente que, morta na terra, ressuscita com e para uma outra vida. Também na morte do Cristo, no acolhimento que os braços da mãe fazem do filho morto, se joga o terrível - pois inclui nele a morta, por simbólica que ela seja - confronto entre duas formas de vida. Na Pietá de Bual - no seu gestualismo figurativo - capta-se o momento onde, na morte, essas duas vidas se misturam, se confrontam e se separam.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Haikai do Viandante (273)

Mário Cesariny - Linha d'Água

nessa linha d'água
ergue-se a luz de setembro
sonho e miragem

A grande utopia

Adriano Sousa Lopes - Pastor na Serra da Estrela

Uma longa tradição - religiosa e política - associou aquele que dirige um grupo humano à figura do pastor. Este tem como missão cuidar do rebanho, evitar a perda de alguma ovelha. O pastor era a metáfora, num mundo tradicional, para o mestre espiritual e o chefe político. A modernidade aniquilou essa velha relação entre o pastor e o rebanho. Contudo, ela não destruiu a figura do pastor. Pelo contrário. Tornou-a um imperativo para cada homem. Cada um deve ser o pastor de si mesmo, cuidar de si espiritual e materialmente. Auto-governar-se. É esta - e não a sociedade igualitária - a grande utopia do tempos modernos.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Dentro do labirinto

Eduardo Batarda - Composition (1988)

Cheguei ao extremo da razão. A partir daqui tudo perde a luz clara trazida por uma arquitectura sóbria e rectilínea. A minha casa, a rua onde vivo, a cidade... Tudo isso é um labirinto. Fio de Ariadne? Para quê, se a saída do labirinto me leva a um outro, e a saída deste me precipita num novo labirinto? Na verdade, descubro-o agora, não há retorno ao palácio iluminado pela luz da razão. Dou um passo na nova escuridão e o meu coração estremece. A noite caiu sobre mim e nada mais resta do que caminhar, mãos a roçar as paredes e deixar-se levar pelo instinto. O labirinto está dentro de mim, o labirinto sou eu, e no fundo do meu coração - sempre o soube - habita o Minotauro. Está sentado e, na tranquilidade das trevas, espera-me.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (527)

Alfred Stevens - The Bath (1867)

527. No murmúrio

No murmúrio
dos teus olhos
há um poço
de água funda,
onde deixei cair
a rosa que colhi
nas margens do rio
que corre
no teu sangue.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Paisagem espiritual

João Hogan - sem título (1972)

Imagina-se, demasiadas vezes, a vida do espírito em analogia com paisagens florescentes, como se ela fosse um passeio sentimental destinado a almas doces e delicadas. Quantas vezes, porém, a paisagem espiritual é despida, crua, rugosa, como se toda a vida tivesse sido evacuada e apenas restasse um frio petrificado sob o vento, sob esse vento que corre onde quer.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (526)

Artur Bual - sem título (1986)

526. De súbito, cavalos

De súbito, cavalos
irrompem na tela.
E a sua sombra
negra galopa
na planície verde
banhada pelo fogo
dos teus olhos.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A tua casa

Álvaro Lapa - s/título (s/d)

O que resta das antigas memórias, das grandes casas, das avenidas largas, do fluxo das pessoas perdidas pela cidade? Passados tantos anos, filho pródigo, volto para casa, e já não há casa, nem rua, nem pessoas. Olho de longe e vejo a ruína que cresceu no solo e tomou conta do mundo, daquele mundo onde vi a luz pela primeira vez. Sento-me no chão e fecho os olhos. O silêncio rodeia-me, abre sulcos dentro de mim, rasga-me a carne. Um fio de sangue corre da minha boca, para logo coagular. Saboreio-o e oiço o rugir da terra. A cidade, as ruínas que restam, avança sobre mim. Imóvel e silencioso, abro os olhos e espero que caia a primeira pedra. Eis a tua casa, oiço.