quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Do espírito da guerra

Umberto Boccioni - Carga de Lanceiros (1914-15)

Nunca se pensa suficientemente a guerra. Recusamo-nos a ver nela uma manifestação do espírito. Na verdade, porém, a guerra é uma poderosa eclosão do espírito, aquela onde a ligação com a morte se manifesta na sua crueza. Toda a vida espiritual é, na sua essência, um exercício de aprender a morrer e a estar morto, como dizia Platão acerca da filosofia. Isto não legitima a guerra e a morte que ela traz consigo. A guerra manifesta poderosamente a vida espiritual, é certo, mas numa perspectiva patológica. Quando a massa dos homens se recusa aprender a morrer que a vida do espírito traz consigo, essa necessidade reprimida é transferida massivamente para o conflito bélico e incendeia o mundo.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Poemas do Viandante (522)

Benvenuto Benvenuti - Alba in padule (1926)

522. A noite abre-se para

A noite abre-se para
o dia irromper
sobre as águas
do pântano
que paradas
acolhem 
as primeira sombras
trazidas pela ave
que canta
na madrugada.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Aprender a anoitecer

Vincent Van Gogh - Anoitecer (1889)

Aprender a anoitecer. O viandante traz em si demasiada luz e a viagem não é mais que um aprender a fazer noite em si mesmo. Aquele que aprendeu a anoitecer esqueceu-se de si e, abandonando-se ao vento que sopra onde quer, extinguiu a sua luz, para que uma outra Luz possa brilhar nas trevas.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Sete da manhã

Edward Hopper - Sete da manhã (1948)

São sete da manhã. Vejo-o no relógio esquecido na montra. Está ainda tudo fechado. As lojas, as casas, mesmo o dia ainda continua coberto pelo véu da noite. São sete da manhã e ainda não descobri onde estou ou para onde vou. Oiço os meus passos no silêncio. Ao longe passam carros, gente que tem um destino, um lugar que os espera. Volto à montra e olho o relógio. Como há pouco, como há duas ou há três horas, continuam a ser sete da manhã. No vidro, vejo o meu reflexo. A barba por fazer, o cabelo em desalinho, a camisa aberta, as calças rasgadas. Afasto-me horrorizado. Dou uns passos para o lado, para fugir ao reflexo do vidro e olho de viés. Lá está a minha imagem. Presa no vidro, presa nas sete da manhã.

sábado, 23 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (268)

Salvador Dali - Cala Nans adornada de cipreses (1921)

os velhos ciprestes
sombreiam as águas do mar
neptuno adormece

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Poemas para Afrodite (segunda série) 15

Josep Cusachs i Cusachs - Desnudo femenino

15. Deixo os meus dedos

Deixo os meus dedos
correr em teu corpo.
Deixo os meus olhos
morrer em tua pele.
E tudo o que quero
arde nesse ventre,
arde na tua boca
onde sopra o vento.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Ídolos e idolatrias

Concetto Pozatti - ...e il popolo fa un vitel d'oro di getto e lo adora (1963)

Um dos traços característicos dos nossos dias é a enorme propensão para a idolatria, para a transformação de qualquer coisa num bezerro de ouro, ao qual se presta, com sofreguidão e histeria, tributo e adoração. Esta propensão é acentuada por um renascimento do politeísmo. A multidão não se contenta com um ídolo. Ela precisa, na sua angústia e desespero, de uma manada de bezerros de ouro. A vida espiritual, contudo, é a diluição dos ídolos e o abandono de qualquer idolatria, a começar pela idolatria de si mesmo, o mais venerado dos bezerros de ouro. 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Rituais de Fevereiro

Joaquín Vancells i Vieta - Fevereiro, paisagem (1891)

Espero, espero que Fevereiro chegue. Ainda haverá frio. Sim, frio e chuva, as árvores despidas. Poderei fazer uma cama de folhas húmidas e deitar-me. O frio que fará! A humidade entrará na minha carne, nos meus ossos, e eu serei fria e húmida como o Inverno. Espero. Sim, quando chegar Fevereiro, entrarei na floresta. Despir-me-ei e nua esperarei a vinda, a vinda... Fará frio e os animais olhar-me-ão com medo. Uma folha cairá sobre mim, quando a luz da tarde começar a declinar. Estremeço, se penso na noite que há-de vir. Estremeço e sinto já a lua a descer sobre o meu corpo indefeso e penetrar-me célula a célula. Estremeço, na luz fria e húmida em que me tornarei. Fevereiro chegará.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Perder a figura

Albert Gleizes - Transfiguração (1943)

Se se pensar a vida espiritual como transfiguração, não basta pensar esta como uma mudança de figura, como a aquisição de novas configurações. É preciso pensá-la na sua radicalidade semântica, como um ir para além de qualquer figura, como um perder a figura. A vida do espírito é um caminho para além de toda e qualquer figuração.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Como uma orquestra

Paul Ackerman - A Orquestra

Da ideia moderna de orquestra pode-se retirar uma poderosa analogia da vida espiritual. Na verdade, olhada desta perspectiva, a vida pode ser encarada como um contínuo ensaio de orquestra, onde um maestro desconhecido tenta conjugar os vários naipes de instrumentos, os poderes do corpo, os anseios da alma e as faculdades do espírito, para que o indivíduo, na sua singularidade, se descubra como pura harmonia.