quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Da ausência e da presença

Hermen Anglada-Camarasa - O palco (1901-02)

O palco é um poderoso símbolo da natureza da vida pública. No palco, os actores representam para uma plateia. Em analogia, também as pessoas, na esfera pública, representam para uma plateia, mais ou menos indefinida. O sentido último deste estar perante os outros é o de transformar aquilo que é uma presença numa representação. Representar significa que o representado não está presente, que se torna ausente. Assim, a vida pública - seja em que grau for - é o processo pelo qual aquele que está presente se torna ausenta. A vida espiritual é o processo contrário: é a viagem que parte da representação e da ausência, que lhe é inerente, para procurar alcançar a pura presença.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Eclipses

Eugène Atget - Eclipse (1911)

Num eclipse, um astro oculta outro. Os eclipses, todavia, não são meros fenómenos astronómicos. Também no homem existem eclipses, quase sempre persistentes. Aí o indivíduo, ansioso da sua subjectividade, acaba por se eclipsar a si mesmo.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (265)

Caspar David Friedrich - Couple Watching the Moon (1824)

sob a luz da lua
ergue-se a velha floresta
olhos noite e sombra

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Da vida como sonho

Arnold Böcklin - A vida é um sonho breve (1888)

A definição metafórica da vida como um sonho breve traz nela a ocultação de uma necessidade que se coloca a todos aqueles a quem esse sonho, ainda que breve, foi dado. Trata-se da necessidade de despertar. Por breve que seja o tempo do sonho, o sonhador recebe também a injunção de despertar do sonho, de abandonar o sono e de chegar ao estado de vigília. A vida espiritual do homem, nas suas múltiplas facetas, não é outra coisa senão esse processo de despertar e de transitar do sono para a vigília. No despertar do espírito, o homem morre, mas morre apenas para aquilo que é um sonho, uma ilusão, ainda por cima breve.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Da tempestade

Léonard Misonne - A Storm Arrive

Também as tempestades fazem o caminho do viandante. Não, não digo que fazem parte do caminho. Digo antes que elas também são o caminho. Fazer parte do caminho seria ainda dizer que se podem evitar, que enfrentá-las ou não está na mais do viajante, no seu arbítrio. Se elas também são o caminho, isso significa que não está nas mãos do viandante vivê-las ou não. Elas impõem-se-lhe, são uma necessidade inexorável, uma disciplina obrigatório num currículo que sendo o seu o ultrapassa infinitamente.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Poemas para Afrodite (segunda série) 13

Jean-Baptiste Camille Corot - L´Odalisque romaine (1843)

13. Reclino-me sobre

Reclino-me sobre
o teu corpo nu.
Toco-te a pele
e deixo os meus
olhos perderem-se
no negro vazio
que se abre em ti.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Combate enigmático

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

A viagem espiritual nada tem de diversão turística. Na verdade, ela não passa de um combate, do mais enigmático dos combates. O viandante luta consigo próprio, com a sombra que nasce do seu desejo de ser alguém, de possuir uma identidade, com a aspiração humana ao reconhecimento. Luta, na verdade, contra uma quimera. Uma quimera, contudo, não deixa de ser um rude e inultrapassável inimigo enquanto não for reconhecido como aquilo que é, uma quimera.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

A palavra do tempo

John Yardley - Bologna Side Street

Estou sentado e vejo o tempo passar. Perde os contornos, desfigura-se, arrasta consigo quem vai, as casas, os carros. O tempo inunda os meus olhos de desfiguração. Um dia foram tão precisos e agora... Bem, agora os meus olhos contam-me outra história do mundo, uma história vista com os olhos do tempo, um fluxo interminável de perda de fronteiras. Aquele casal é já uma névoa e o grande edifício abre-se para mim na vitória dos escombros, também eles entregues à anarquia da poeira. Tremo se olho para as minhas mãos. Tremo se a a memória me assalta. O tempo fala dentro de mim e eu sou apenas a imprecisão de um fluxo, a sombra delida que, em desespero, se agarra ao fetiche de um nome, como se as palavras não fossem vento no silêncio do tempo que passa.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O bosque obscuro

Valentín Albardíaz - Bosque Oscuro VII (1994)

Na Idade Média ainda era possível descrever a experiência mística a partir da metáfora do bosque deleitoso. Os prazeres que se abriam aí à experiência da humanidade foram-se, com o advento e progresso da Idade Moderna e a propensão desta para a acção, tornando cada vez mais estranhos. O apelo a uma vida que esteja para lá da acção, uma vida de reflexão e de contemplação, implica ainda, nos dias de hoje, a entrada no bosque, mas de um bosque obscuro, tal a desconfiança que tudo isto provoca na mentalidade dos homens modernos.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Encontrar a vida

Maurice Denis - Orpheus and Eurydice (1910)

Como todos os mitos, o de Orfeu e de Eurídice presta-se a interpretações múltiplas e diferenciadas. Podemos, por exemplo, pensar que Orfeu desce ao reino da morte para resgatar a sua própria alma, o seu princípio de vida que estaria morto pelo envolvimento na vida quotidiana. O que o mito nos diz, então, não é que o homem não pode olhar esse princípio - a alma - que o constitui. Diz-nos antes que não o pode contemplar em qualquer lugar e movido por qualquer desejo de certificação. Todo aquele que quer assegurar-se da sua vida já a perdeu. Só quem abandonar qualquer desejo de segurança e de certeza poderá encontrar essa mesma vida.