quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 8

José de Togores - Desnudo de espaldas (1922)

8. Raptada no sonho

Raptada no sonho
Vejo-te perdida
Entre luz e sombras.
Espero que voltes
No fogo da noite
E sobre mim desça
A voz que me ateia.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Entre mundos

Yasuo Kuniyoshi - Between two worlds (1939)

Estar entre dois mundos não é um acidente no percurso do viandante. Viver na fronteira, nesse território equívoco, é a natureza da própria viagem espiritual. De um lado, o mundo que se abandona; do outro, o mundo que espera. E onde é que é essa fronteira? Em todo o lado a que o viandante chegue. Sobre a terra, a fronteira, esse entre mundos, é o único território disponível para o homem, saiba-o ele ou não.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O segredo do amanhecer

Guillermo Trujillo - Amanecer Chocoe (2000)

Há um momento do amanhecer em que tudo parece suspenso. A luz e as trevas travam uma dura batalha pela vitória. Nesse momento de indecisão, aquele que toma a natureza como um símbolo a meditar encontra um segredo. Não um segredo que esteja oculto e que a curiosidade pode revelar. Encontra um efectivo segredo que está velado e sobre o qual não há revelação possível. O segredo é o da estranha fraternidade entre luz e trevas, o das suas núpcias nas horas indecisas dos crepúsculos. Aquilo que não tem revelação é aquilo que dá que pensar, mas o pensar é ainda e só uma preparação para enfrentar o mistério, perante o qual a razão experimenta o seu limite e a sua impotência.

domingo, 25 de outubro de 2015

O touro moribundo

Pablo Picasso - Touro moribundo (1934)

Meu Deus, o que fiz? O matador ergue a mão em triunfo, a multidão aplaude e um suor frio corre-lhe na face, desce pelo pescoço, gela-lhe no peito. O touro estremece ainda uma e outra vez. Suspira e o matador sente aquele suspiro nascer-lhe no fundo gelado do peito. Erguem-no aos ombros. Que faena, gritam. E tudo nele arrefece. O olhar prende-se ao touro agonizante, nos traços quase inertes daquele que ainda há pouco era o seu companheiro de arena, aquele que ele olhava de frente e via nele os traços da sua morte. Os aplausos da multidão recrudescem - malditos aplausos, pensa. Que frio está, murmura, mas ninguém o ouve. Sente uma dor nas costa, logo abaixo do pescoço, uma dor vibrante, e sente as costas encharcadas. Olha de novo o touro, parece vivo, reflecte perplexo, e fixa os olhos nos olhos do animal. Cai desamparado no chão, uma ferida nas costas de onde sai um rio de sangue. Por terra, antes de tudo enegrecer pensa: eu sou o touro que matei.

sábado, 24 de outubro de 2015

Afinidades electivas

José de Togores - Afinidades (1930)

As Afinidades Electivas, título de um romance de Goethe, sempre me fascinou. Não tanto pelo conteúdo trágico da obra, mas porque esse título indicia aquilo que, na vida do espírito, atrai e junta certas pessoas, ou repele outras. Apesar do caminho espiritual ser sempre um caminho solitário, a verdade é que certos encontros não deixam de ser fundamentais, encontros esses que estabelecem ligação entre pessoas que possuem certas afinidades. Nesses estranhos encontros, o que sobressai é a sensação que essas afinidades são o resultado de um certa eleição. Eleição para se submeterem a um dado caminho e fazerem uma parte da jornada juntas.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Olhar a natureza

Hiro Yamagata - Folhas caídas (1982)

Tempos de Outono. Como as árvores se despem das folhas agora inúteis, também o homem, para persistir no caminho que o espírito lhe indica, se deve despir de todas as ilusões e inutilidades que vida deposita nele. Olhar para a natureza torna-se um imperativo. Aprender com ela a ascese e a purificação é uma necessidade, para que se abre à voz que o chama e lhe indicou a senda do Outono.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (253)

Albert Bierstadt - A Storm in the Rocky Mountains, Mt. Rosalie (1866)

chega a tempestade
desce sobre a montanha
terror sem idade

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Signo sinal 8. A leitura decisiva

Francisco Bores - A leitura (1934)

Uma das principais competências exigidas pela vida espiritual é a da leitura. Não propriamente a leitura de textos, mas a leitura de sinais e de símbolos. Na vida do espírito, mais importante do que a leitura dos diferentes discursos é a leitura daquilo que acontece, seja dentro do viandante seja no ambiente que o envolve. Porém a leitura decisiva será daquilo que não acontece. É preciso aprender a ler lá onde desapareceram todos os símbolos, os signos e os sinais. Ler o silêncio. Esta é a leitura mais difícil e a mais decisiva.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 7

Jorge Apperley - Desnudo (1945)

7. Nesse abandono

Nesse abandono
onde te guardo
na minha memória,
há restos de luz
que descem do rosto
e poisam nos seios
o fogo e a glória.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Raízes e errância

Vincent Van Gogh - Roots and Tree Trunks (1890)

Vivemos numa época em que o enraizamento dos homens perdeu sentido. Num tempo de mobilização contínua, a diáspora e o nomadismo tornaram-se a circunstância do homem. Trazem com eles a destruição da ligação com a terra e da possibilidade de enraizamento. E esta é uma das causas fundamentais do empobrecimento geral da vida espiritual do homem. Aquele que se quer elevar (no sentido de procurar o que é do alto) necessita de se enraizar fundo na terra. Na ausência desse enraizamento, resta a superfície onde os homens se arrastam, errantes, de um lado para o outro.