quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (251)

Gustav Klimt - Palácio sobre a água (1908)

imóveis as águas
esperam a luz do estio
árvores na margem

terça-feira, 6 de outubro de 2015

No magma umbroso

Fernando Lerín - Sem título (1985)

No magma umbroso da vida estão contidos todos os possíveis. O lento e doloroso trabalho do espírito acabará por retirar uma e outra figura (um deus, um poema, um quadro, um rapto místico, uma sinfonia), num processo secreto, inesperado, que traz consigo a luz que iluminará por instantes o caminho do viandante.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Do trabalho alienado

George Grosz - Arbeiter (1912-13)

É por demais conhecida a teoria marxista da alienação. O homem, no trabalho moderno ao tornar-se mercadoria, estranha-se da sua própria natureza. O mecanismo económico do estranhamento é, contudo, secundário. A alienação do homem no trabalho reside no facto deste não ser um factor de realização da vida do espírito. Em muito do trabalho que o homem realiza - mesmo em domínios ditos criativos e não apenas no trabalho mecânico - o que existe é uma submissão do espírito a regras que lhe são estranhas. É esta submissão que impede que o trabalho de cada um seja a realização de uma vocação, isto é, uma resposta a uma voz que o chama.

domingo, 4 de outubro de 2015

Fogo de artifício

Darío de Regoyos y Valdés - Fuegos de artificio

O fogo de artifício não é uma mera diversão para alegrar a vida cansada das pessoas. Ele constitui a metáfora por excelência da vida dos homens. Preferem um fogo e uma luz aparentes ao fogo e à luz real e efectiva. O verdadeiro fogo queima e a verdadeira luz cega. Para lidar com eles, um longo e difícil caminho é necessário. É mais fácil fixar-se nas aparências e deixar-se levar pelo artifício do que entregar-se ao esforço que a vida do espírito exige.

sábado, 3 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 5

Aristide Maillol - Dans l'esprit d'une fresque (1930)

5. Silêncio, silêncio

Silêncio, silêncio.
Oiço um rumor,
Nasce no teu ventre.

Silêncio, silêncio.
Vejo o fulgor
Que a ti me prende.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Arrependimento e conversão

Cecilio Pla Gallardo - Arrepentimiento (1896)

Na vida dos homens, o arrependimento é uma das experiências mais equívocas. Arrepender-se significa que a consciência moral sente remorso por actos ou faltas passadas. Arrependimento, exigem-no os pais aos filhos, os professores aos alunos, o confessor aos crentes, o juiz aos condenados. E o bom senso diz-nos que o arrependimento é melhor que a contumácia no erro. Este jogo entre o arrependimento da consciência moral e a orgulhosa obstinação no erro encerra, contudo, o problema no âmbito da consciência e oculta a questão essencial. O problema não é moral mas da ordem do ser, daquilo que se é. Mais do que arrepender-se, há que tornar-se outro, deixar de ser aquilo que conduz ao erro e tornar-se um outro ser. É esta alteração que faz da conversão uma experiência radicalmente diferente da do arrependimento. E só esta experiência pode evitar o retorno à errância.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (250)

Eugene Delacroix - Estudo do céu ao entardecer (1849)

um céu de outono
entardece nos teus olhos
luz sombra e sonho

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O lugar da noite

Edvard Munch - Evening on Karl Johan (1892)

Para onde vou agora que todos voltam para casa? Quando a noite cai, sinto um pequeno alívio. Os dias, com a sua luz, cansam-me. Por vezes, sinto a cabeça vazia; outras, ela parece estoirar de tão cheia. São assim os meus dias, um eterno balancear entre o vazio e a plenitude. Quando a noite cai, todavia, saio de casa e tomo o caminho contrário ao da multidão que volta. Não olham para mim, seguem indiferentes como se eu fosse apenas uma sombra no crepúsculo. Essa indiferença alimenta-me e eu sigo rua fora. Para onde? Apresso-me para o sítio que semeia o medo daqueles que passam por mim. Corro para o lugar onde nasce a noite. E ela, hirta no seu vestido de veludo, lá está à minha espera. Sinto os seus olhos nos meus. Não os vejo, sinto-os. Tremo no silêncio e nunca sei se a manhã chegará.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

O jogo das labaredas

Boris Kustodiev - Fogueira (1916)

A fogueira não é apenas o centro de uma sociabilidade campestre, o lugar à volta do qual os homens se reúnem e dão livre curso à imaginação narrativa. Ela é também um sinal, um indício, em suma um símbolo. Eleva-se da terra para o céu, como se o destino de toda a matéria fosse rarefazer-se para se elevar ao alto. Aturdido, o homem fixa o olhar no jogo das labaredas e, sem dar por isso, recebe uma lição de metafísica.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O desejo e o nada

Remedios Varo - O desejo (1935)

Associamos rapidamente o desejo ao fogo e dizemos coisas como o fogo do desejo ou o desejo ardente. O que muitas vezes desencadeia o desejo é uma carência, a ausência de qualquer coisa. Pensa-se então que a energia que se manifesta no desejo vem do objecto desejado e não do nada que se revela na carência ou na falta. Isso será, todavia, um equívoco. A energia que alimenta o desejo não é o objecto que o há-de satisfazer, e assim matar, mas a própria carência, o próprio o nada que se manifesta no desejar. O desejo alimenta-se de si e é a si que vai buscar a energia com que fulge na noite e arde no dia. O desejo deseja-se a si.