segunda-feira, 7 de setembro de 2015

O espírito e a espada

Esteban Vicente - Séries Alison - Harmonia (1976)

Não cuideis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas a espada. (Mat. 10: 34)

A grande ilusão da vida espiritual é a harmonia. Quantas vezes as pessoas julgam que a vida espiritual tem como missão proporcionar-lhe uma existência bem ordenada, perfeita, onde o desacordo consigo e com o mundo desapareça, uma vida de paz, ordem, coerência e conformidade consigo mesmo. A vida espiritual, porém, não veio trazer a paz mas a guerra. Veio trazer a desordem, o desacordo, a desconformidade consigo e a incoerência. A vida espiritual não é uma sessão de auto-ajuda, mas a viagem por uma paisagem em guerra. Quem quiser adentrar-se no caminho do espírito tem de aprender a manejar a espada.

domingo, 6 de setembro de 2015

Haikai do Viandante (246)

Gerardo Rueda - Contrapunto (1971)

um mundo vazio
contraponto e harmonia
coração sombrio

sábado, 5 de setembro de 2015

A voz

José Bellosillo - Adentrándome (1992)

Quando acordou, não compreendeu de imediato a razão por que despertara. Ouviu uma voz. A sua nitidez sonora não correspondia à clareza das palavras. Eram sons que nunca tinha escutado. Parecia chamá-lo, mas não era o seu nome que ouvia. Levantou-se, saiu de casa e seguiu a voz. Caminhou, afastou-se da cidade. Parou perante a parede de neblina. O sussurro vinha de lá. Penetrou na névoa, uma angústia atravessava-lhe o coração, a voz sussurrava. O dia clareou, mas a névoa cerrou-se e a voz recrudesceu em intensidade. Estava próxima, muito próxima. Tropeçou novamente e viu um vulto. Chamou-o. O vulto voltou-se – ele estremeceu perante a sua própria imagem – e a sombra exclamou: até que enfim, eu sou a tua voz, o nome do teu nome. 

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Poemas do Viandante (520)

Albert Bierstadt - Bosques outonais (1886)

520. espero-vos em setembro

espero-vos em setembro
bosques outonais

vinde com a vossa mão
trazer-me a sombra

vinde suaves e perfeitos
sob a luz do céu

vinde cobertos de folhas
cantar-me o silêncio

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

O clamor da terra

Marc Chagall - Caim e Abel (1911)

E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra. (Gen. 4:10)

A voz do sangue - essa voz que, simbolicamente, iniciou o clamor com o sangue de Abel - não parou de clamar sobre a terra. Caim e Abel originaram infinitos gerações e, a cada instante, o sangue de um novo Abel escorre das mãos de um novo Caim. O clamor das vítimas é tão grande que, parece, terra e céus deixaram de o escutar. Nestes dias de trevas, deveríamos meditar longamente o versículo do Génesis. E não se trata apenas de dar atenção à afirmação a voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra. A pergunta é bem mais difícil de suportar. Que fizeste?

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Da vida verdadeira

Maurice de Vlaminck - A aldeia

Um dos grandes mitos das sociedades urbanas é o da vida na aldeia. Uma comunidade pequena, poucas exigências sociais, uma vida simples, preenchem o imaginário daqueles que vivem em comunidades complexas. E tudo isto é imaginado como uma vida mais verdadeira e mais autêntica. Na verdade, contudo, a vida na aldeia pode ser tão falsa e tão inautêntica como na maior das metrópoles actuais. A verdade e a autenticidade da existência não depende do tamanho da comunidade onde se está inserido, mas do compromisso com a voz que, em cada um, o chama e, se for escutada, o guia, independente de ser um aldeão ou um citadino.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Da adoração

Antonio Bisquert - Adoración (1975)

Pode-se pensar que a adoração é uma alienação, dada a sua aparência passional. Isso é uma possibilidade e será certamente verdade para muitas práticas de adoração. Ela, porém, pode ser vista como um mistério, no qual a coisa adorada emerge do apagamento do adorador.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Chegar à fonte

Giovanni Segantini - Mulher na fonte (1895-96)

No intrincado jogo de metáforas e símbolos que a experiência da humanidade foi produzindo, a fonte tem um lugar de relevo. O lugar de onde brota a água presta-se à construção de uma simbólica que nos remete para a fonte da vida, para a fonte do espírito. Chegar, porém, à fonte não é chegar à origem. A fonte é o lugar onde algo se manifesta, emerge no ser e se deixa ver na sua presença. Chegar à fonte não é o fim da viagem. É um recomeço. A fonte é apenas a porta de entrada.

domingo, 30 de agosto de 2015

A aridez da pedra

JCM - Mitologias (o triunfo da vida). Serra de Aire (2007)

Subitamente, na aridez desolada da pedra a vida emerge triunfante. O que aprendemos nós com isso? Talvez a pedra não seja tão árida. Talvez a aridez não se tão petrificante. Aprendemos que a vida do espírito não é outra coisa senão extrair da aridez e da petrificação da existência a vida plena e, cuidando-a, fazê-la triunfar sobre a desolação da morte.

sábado, 29 de agosto de 2015

Da frugalidade e da abundância

Ferdinand Hart Noibbrig - Abundância (1895)

A vida material domina as preocupações dos homens, e domina-as na busca da abundância, de uma infinita viagem de acumulação, que nunca se completa e nunca se sente satisfeita. A vida do espírito, contudo, nasce da frugalidade, do abandono, da satisfação com o acontecer. A vida espiritual não alimenta mercados nem ateia a imaginação dos coleccionadores. Ela é pobre. Foi assim que foi simbolizada no presépio em Belém.