domingo, 1 de novembro de 2015

Das artes e das letras

Fernand Léger - A leitura (1924)

Uma das distinções centrais entre a literatura e as artes plásticas pode ser pensada a partir do olhar. Na pintura e na escultura, o olhar concentra-se no objecto artístico. Repousa nele, perscruta-o, observa os jogos da cor, da forma, da luz. A relação entre a obra e o olhar é essencial. Na literatura, porém, essa relação é apenas instrumental. O leitor também fixa o olhar nas palavras do poema ou da narrativa, mas fixa-o aí para poder olhar para além do texto, para o mundo espiritual que é evocado. Nas artes plásticas, o espírito materializa-se e torna-se concreto. Na literatura, o texto é apenas um medium da relação entre o espírito do leitor e o da obra. É tudo isso que o quadro de Fernand Léger torna patente de forma tão ostensiva.

sábado, 31 de outubro de 2015

A terapia da acção

Pablo Picasso - Contemplación (1904)

A contemplação não é propriamente o oposto da acção. Agir arrasta sempre consigo uma qualquer dor. E esta dor transforma-se numa melancolia, a melancolia da acção. Quando a melancolia se torna insuportável, a contemplação emerge como a terapia da acção.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (254)

Dionisio Fierros - Acantilados en Asturias

águas entre montes
espelham o céu de inverno
murmúrio nas fontes

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

As velhas casas

Chaim Soutine - Old House near Chartres (1934)

Há nas velhas casas um estranho encanto. Este nasce-lhe daquilo que elas puderam observar e absorver ao longo de uma vida maior que a dos homens. O espírito destes - as suas venturas, as suas aventuras e as suas desventuras - impregna-se nas paredes, no telhado, em toda o lado. As casas não são coisas inertes. Nelas concentra-se também a aventura espiritual do homem, seja esta grande ou pequena. Seja esta um triunfo ou uma derrota.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 8

José de Togores - Desnudo de espaldas (1922)

8. Raptada no sonho

Raptada no sonho
Vejo-te perdida
Entre luz e sombras.
Espero que voltes
No fogo da noite
E sobre mim desça
A voz que me ateia.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Entre mundos

Yasuo Kuniyoshi - Between two worlds (1939)

Estar entre dois mundos não é um acidente no percurso do viandante. Viver na fronteira, nesse território equívoco, é a natureza da própria viagem espiritual. De um lado, o mundo que se abandona; do outro, o mundo que espera. E onde é que é essa fronteira? Em todo o lado a que o viandante chegue. Sobre a terra, a fronteira, esse entre mundos, é o único território disponível para o homem, saiba-o ele ou não.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O segredo do amanhecer

Guillermo Trujillo - Amanecer Chocoe (2000)

Há um momento do amanhecer em que tudo parece suspenso. A luz e as trevas travam uma dura batalha pela vitória. Nesse momento de indecisão, aquele que toma a natureza como um símbolo a meditar encontra um segredo. Não um segredo que esteja oculto e que a curiosidade pode revelar. Encontra um efectivo segredo que está velado e sobre o qual não há revelação possível. O segredo é o da estranha fraternidade entre luz e trevas, o das suas núpcias nas horas indecisas dos crepúsculos. Aquilo que não tem revelação é aquilo que dá que pensar, mas o pensar é ainda e só uma preparação para enfrentar o mistério, perante o qual a razão experimenta o seu limite e a sua impotência.

domingo, 25 de outubro de 2015

O touro moribundo

Pablo Picasso - Touro moribundo (1934)

Meu Deus, o que fiz? O matador ergue a mão em triunfo, a multidão aplaude e um suor frio corre-lhe na face, desce pelo pescoço, gela-lhe no peito. O touro estremece ainda uma e outra vez. Suspira e o matador sente aquele suspiro nascer-lhe no fundo gelado do peito. Erguem-no aos ombros. Que faena, gritam. E tudo nele arrefece. O olhar prende-se ao touro agonizante, nos traços quase inertes daquele que ainda há pouco era o seu companheiro de arena, aquele que ele olhava de frente e via nele os traços da sua morte. Os aplausos da multidão recrudescem - malditos aplausos, pensa. Que frio está, murmura, mas ninguém o ouve. Sente uma dor nas costa, logo abaixo do pescoço, uma dor vibrante, e sente as costas encharcadas. Olha de novo o touro, parece vivo, reflecte perplexo, e fixa os olhos nos olhos do animal. Cai desamparado no chão, uma ferida nas costas de onde sai um rio de sangue. Por terra, antes de tudo enegrecer pensa: eu sou o touro que matei.

sábado, 24 de outubro de 2015

Afinidades electivas

José de Togores - Afinidades (1930)

As Afinidades Electivas, título de um romance de Goethe, sempre me fascinou. Não tanto pelo conteúdo trágico da obra, mas porque esse título indicia aquilo que, na vida do espírito, atrai e junta certas pessoas, ou repele outras. Apesar do caminho espiritual ser sempre um caminho solitário, a verdade é que certos encontros não deixam de ser fundamentais, encontros esses que estabelecem ligação entre pessoas que possuem certas afinidades. Nesses estranhos encontros, o que sobressai é a sensação que essas afinidades são o resultado de um certa eleição. Eleição para se submeterem a um dado caminho e fazerem uma parte da jornada juntas.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Olhar a natureza

Hiro Yamagata - Folhas caídas (1982)

Tempos de Outono. Como as árvores se despem das folhas agora inúteis, também o homem, para persistir no caminho que o espírito lhe indica, se deve despir de todas as ilusões e inutilidades que vida deposita nele. Olhar para a natureza torna-se um imperativo. Aprender com ela a ascese e a purificação é uma necessidade, para que se abre à voz que o chama e lhe indicou a senda do Outono.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (253)

Albert Bierstadt - A Storm in the Rocky Mountains, Mt. Rosalie (1866)

chega a tempestade
desce sobre a montanha
terror sem idade

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Signo sinal 8. A leitura decisiva

Francisco Bores - A leitura (1934)

Uma das principais competências exigidas pela vida espiritual é a da leitura. Não propriamente a leitura de textos, mas a leitura de sinais e de símbolos. Na vida do espírito, mais importante do que a leitura dos diferentes discursos é a leitura daquilo que acontece, seja dentro do viandante seja no ambiente que o envolve. Porém a leitura decisiva será daquilo que não acontece. É preciso aprender a ler lá onde desapareceram todos os símbolos, os signos e os sinais. Ler o silêncio. Esta é a leitura mais difícil e a mais decisiva.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 7

Jorge Apperley - Desnudo (1945)

7. Nesse abandono

Nesse abandono
onde te guardo
na minha memória,
há restos de luz
que descem do rosto
e poisam nos seios
o fogo e a glória.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Raízes e errância

Vincent Van Gogh - Roots and Tree Trunks (1890)

Vivemos numa época em que o enraizamento dos homens perdeu sentido. Num tempo de mobilização contínua, a diáspora e o nomadismo tornaram-se a circunstância do homem. Trazem com eles a destruição da ligação com a terra e da possibilidade de enraizamento. E esta é uma das causas fundamentais do empobrecimento geral da vida espiritual do homem. Aquele que se quer elevar (no sentido de procurar o que é do alto) necessita de se enraizar fundo na terra. Na ausência desse enraizamento, resta a superfície onde os homens se arrastam, errantes, de um lado para o outro.

domingo, 18 de outubro de 2015

O cavalo de Tróia

Oscar Dominguez - O cavalo de Tróia (1947)

Gostamos sempre de nos identificar com os vencedores. Na guerra de Tróia, somos, na nossa imaginação, os companheiros de Ulisses, de Agamémnon e de Aquiles. Esta identificação, porém, oculta a nossa verdadeira situação espiritual. Presos a ilusões, perdido na errância, somos como os troianos que trazem para dentro de casa aquilo que os há-de derrotar. No caminho que cabe a cada um, o mais difícil é resistir à tentação de trazer para dentro de si o cavalo de Tróia de onde sairão os inimigos que nos aniquilarão na viagem.

sábado, 17 de outubro de 2015

O barco vazio

Abert Gleizes - Barcaza atracada en el muelle (1908)

Sento-me na margem, observo os barcos e fecho os olhos. Preso à terra, devaneio com o mar, com o rumorejo das águas no casco, o balancear do barco impelido pela ondulação. Sonho com o além mar, essas outras terras a que nunca irei. Tenho pavor das águas. Sirenes cortam a tarde e a azáfama das gentes do mar embala-me. Adormeço no molhe e tudo desaparece no fundo negro do sono. Quando acordo, noite dentro, a terra desapareceu. O lugar onde estava evaporou-se e à minha volta só há escuridão. Sinto-me balancear e compreendo, ao ouvir o marulhar das águas no casco, que estou no mar. Olho o céu e vejo as estrelas. Levanto-me e corro o barco. Está vazio. Só eu, o mar e as estrelas no fundo negro dos céus.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O chefe de orquestra

Paul Ackerman - A orquestra

O homem não é um ser unidimensional. Pelo contrário, é composto por múltiplas dimensões que, como os instrumentos de uma orquestra, precisam de ser concatenados. O trabalho de concatenação cabe ao chefe da orquestra, ao espírito. Uma parte da vida espiritual está ligada à descoberta do maestro e à sua preparação. A outra parte é o trabalho deste na transformação de uma cacofonia numa peça musical sublime.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Um súbito encontro

Thomas Hart Benton - Figure Study (1919-20)

O que esperam elas de mim? Pensou. Sentiu uma estranha opressão no peito e mastigou em seco. De onde vieram? Vim passear e, cansado, sentei-me aqui, à sombra. Terei dormido. Instantes, horas? Não sei. Ao acordar, senti uma presença. Uma presença indefinida, sem contornos, apenas um hálito, uma respiração. Estou estremunhado, devo ter dormido muito. Levou as mãos aos olhos e esfregou-os. A luz incidia com força, aqui e ali reverberava. Ouviu murmúrios e fixou o olhar. Elas falavam mas não passavam de esboços difusos, figuras intermédias entre a inexistência e a vida. Tenho medo, disse ele de si para si. Fechou os olhos com força, como se suspendesse aquela hora, e voltou a abri-los. Elas olharam-no pela primeira vez. Eram agora figuras definidas, corpos de carne, um rubor maculava-lhes as faces. O que esperam elas de mim? Tornou a interrogar-se. A mais velha, enquanto a outra olhava o chão, levantou-se disse-lhe: vem.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (252)

Henri Delacroix - Arbres au bord de la mer (1906/7)

sendas de verão
árvores junto ao mar
o fruto renasce

terça-feira, 13 de outubro de 2015

O não expectável

Maria Helena Vieira da Silva - O acontecimento (1972-73)

Duas características marcam aquilo que chamamos acontecimento. Por um lado, o facto de ocorrer, de sobrevir; por outro, a sua natureza contingente, não necessária, meramente eventual. Isto faz do acontecimento, ao olhar comum, alguma coisa não essencial, aquilo que ocorre mas que pode não ocorrer. Esta leitura, todavia, é superficial, pois não tem em conta o carácter de epifania que todo o acontecimento traz consigo. Um acontecimento é a revelação de alguma coisa que, ao manifestar-se, rompe com o hábito e com aquilo que é expectável. O não expectável pode ser muito mais essencial do que aquilo que ocorre segundo as marcas da necessidade.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A necessidade de certificação

Marc Chagall - O mito de Orfeu (1977)

Podemos estabelecer uma conexão entre o mito de Orfeu e o destino da mulher de Lot. Alguma coisa terrível acontece quando se olha para trás. Mas o mito de Orfeu, com a perda de Eurídice, talvez nos permita perceber uma outra coisa. A mulher de Lot parece movida pela curiosidade. Orfeu é movido pela necessidade de certificação, de certeza. E quando procura essa certificação perde o alvo da sua viagem. A vida espiritual está para além da certeza e da certificação. Nela nada está dado, nada está garantido. O homem avança no meio do nevoeiro e nada pode esperar a não ser prosseguir o caminho.

domingo, 11 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 6

Paul Ackerman - Femme nue devant une table

6. Sob a luz da sombra

Sob a luz da sombra
Desenho o teu corpo
Preso ao meu desejo.

E o que me assombra
Não é luz nem trevas
Mas o que em ti vejo.

sábado, 10 de outubro de 2015

A reconstrução da totalidade

Georgia O'keeffe - Blue and Green Music (1919)

A realidade sensível que nos atinge cinde-se nas portas de entrada da nossa consciência. Sabor, cor, tacto, som e cheiro são já exercícios que resultam de um processo analítico de abstracção imposto pela nossa natureza. Toda a vida espiritual passa pela reconstrução daquilo que foi cindido, num esforço de apreensão do todo que a nossa sensibilidade fragmentou, numa experiência que espera sempre descobrir que o todo é mais do que a mera soma das partes.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O ritmo de cada um

Nicolás de Lekuona - O bosque do ritmo (1932)

O ritmo é aquilo que diferencia o caminho de cada um na vida do espírito. Por isso, nenhuma aventura espiritual de um homem pode ser modelo a copiar por outro. A consciência desta diferença radical é essencial. O que está em jogo, na vida espiritual, não é a massificação igualitária mas a singularização de cada um. Que cada um, segundo o ritmo que é o seu, responda à voz que o chamou. 

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (251)

Gustav Klimt - Palácio sobre a água (1908)

imóveis as águas
esperam a luz do estio
árvores na margem

terça-feira, 6 de outubro de 2015

No magma umbroso

Fernando Lerín - Sem título (1985)

No magma umbroso da vida estão contidos todos os possíveis. O lento e doloroso trabalho do espírito acabará por retirar uma e outra figura (um deus, um poema, um quadro, um rapto místico, uma sinfonia), num processo secreto, inesperado, que traz consigo a luz que iluminará por instantes o caminho do viandante.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Do trabalho alienado

George Grosz - Arbeiter (1912-13)

É por demais conhecida a teoria marxista da alienação. O homem, no trabalho moderno ao tornar-se mercadoria, estranha-se da sua própria natureza. O mecanismo económico do estranhamento é, contudo, secundário. A alienação do homem no trabalho reside no facto deste não ser um factor de realização da vida do espírito. Em muito do trabalho que o homem realiza - mesmo em domínios ditos criativos e não apenas no trabalho mecânico - o que existe é uma submissão do espírito a regras que lhe são estranhas. É esta submissão que impede que o trabalho de cada um seja a realização de uma vocação, isto é, uma resposta a uma voz que o chama.

domingo, 4 de outubro de 2015

Fogo de artifício

Darío de Regoyos y Valdés - Fuegos de artificio

O fogo de artifício não é uma mera diversão para alegrar a vida cansada das pessoas. Ele constitui a metáfora por excelência da vida dos homens. Preferem um fogo e uma luz aparentes ao fogo e à luz real e efectiva. O verdadeiro fogo queima e a verdadeira luz cega. Para lidar com eles, um longo e difícil caminho é necessário. É mais fácil fixar-se nas aparências e deixar-se levar pelo artifício do que entregar-se ao esforço que a vida do espírito exige.

sábado, 3 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 5

Aristide Maillol - Dans l'esprit d'une fresque (1930)

5. Silêncio, silêncio

Silêncio, silêncio.
Oiço um rumor,
Nasce no teu ventre.

Silêncio, silêncio.
Vejo o fulgor
Que a ti me prende.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Arrependimento e conversão

Cecilio Pla Gallardo - Arrepentimiento (1896)

Na vida dos homens, o arrependimento é uma das experiências mais equívocas. Arrepender-se significa que a consciência moral sente remorso por actos ou faltas passadas. Arrependimento, exigem-no os pais aos filhos, os professores aos alunos, o confessor aos crentes, o juiz aos condenados. E o bom senso diz-nos que o arrependimento é melhor que a contumácia no erro. Este jogo entre o arrependimento da consciência moral e a orgulhosa obstinação no erro encerra, contudo, o problema no âmbito da consciência e oculta a questão essencial. O problema não é moral mas da ordem do ser, daquilo que se é. Mais do que arrepender-se, há que tornar-se outro, deixar de ser aquilo que conduz ao erro e tornar-se um outro ser. É esta alteração que faz da conversão uma experiência radicalmente diferente da do arrependimento. E só esta experiência pode evitar o retorno à errância.