quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A cegueira de Édipo

André Masson - Édipo (1939)

Das múltiplas peripécias da vida de Édipo, a mais decisiva de todas é a que ocorre quando ele se cega. Nem o abandono à morte pelos pais, nem o salvamento miraculoso e a subsequente adopção por Pólibo, rei de Corinto, nem o assassinato do verdadeiro pai, tão pouco a derrota da esfinge e o casamento com a sua mãe e a coroação como rei de Tebas possuem o significado espiritual da cegueira auto-infligida. Em todos os momentos anteriores, Édipo move-se segundo o senso comum que pertencia à sua casta. E esse mover-se no que é comum está intimamente ligado ao seu desconhecimento de si mesmo. A revelação da identidade tonou-o cego para o que é o comum, tornou-o indivíduo e abriu os seus olhos para uma luz que não é visível. Édipo, ao cegar-se, tornou-se indivíduo e sábio. Abandonou o caminho do herói, a procura da glória, e a vida do espírito, como um caminho apenas seu, abriu-se diante dele.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (292)

Gustavo Torner - Átomos - Los Cuatro Elementos. Fuego (1986)

fogo sobre fogo
a campina incendiada
um corvo em agosto

terça-feira, 9 de agosto de 2016

A mulher adúltera e a consciência de si

Max Beckmann - Christ and the Woman Taken in Adultery (1917)

Um episódio central para compreender a dependência da modernidade ocidental - aparentemente, tão pouco cristã - do cristianismo é o da mulher adúltera (João 8:1-11). Dois elementos evidenciam já a ultrapassagem da leitura formal da tradição. Em primeiro lugar, a não condenação da mulher em contradição com a lei mosaica. Essa não condenação, porém, emerge da afirmação da subjectividade dos actores do episódio, dos acusadores e da acusada, e este é o segundo elemento. É a confrontação com a sua subjectividade que leva os acusadores a abandonar o projecto da acusação. A própria mulher é posta diante de si mesma e da sua consciência nas palavras finais de Cristo. O que há de notável neste episódio - mais do que a retórica gasta e inútil do amor - é o confronto entre as estruturas objectivas do mundo social exterior aos indivíduos e a consciência subjectiva. E é nesta que tudo agora se deverá decidir.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (565)

Tal-Coat- Aigu réfléchi (Silex et gris) (1958)

565. cinzento e sílex

cinzento e sílex
destilam
um rumor de cinza
no murmúrio
levitante do lago
na sombra
ferida do fogo
na volúpia
fortuita da floresta

(04/08/2016)

domingo, 7 de agosto de 2016

O fim do mundo

José Gutiérrez Solana - El fin del mundo (1932)

As grandes visão apocalípticas, como as do fim do mundo, são interessantes não por aquilo que anunciam mas pelo desejo que nelas se manifesta. Não nos dizem o que vai acontecer mas o que o homem, em algum momento da sua história, desejou que acontecesse. A profecia do fim do mundo conta-nos, então, que este - o mundo - se tornou de tal modo insuportável que desejámos que ele tivesse um fim. O que o espírito deve aí procurar, para se instruir e e fazer a sua viagem, não é o que vai acontecer num futuro qualquer, mas aquilo que desencadeia o desejo de rejeição, aquilo que encerra a vida espiritual num círculo de ressentimento e dor. 

sábado, 6 de agosto de 2016

O filho pródigo e o homem moderno

Giorgio de Chirico - Ritorno del fliglio prodigo (1965)

Na parábola do filho pródigo (Lucas 15:11-31) há uma equivocidade central que tem o efeito surpreendente de transformar em filho perdido não aquele que dissipou os bens herdados mas o que se manteve fiel à casa paterna e à regra nela existente, isto é, que se manteve fiel à tradição formal. O reconhecimento é dado ao que experimentou o peso e as consequências da autonomia e se reencontrou depois de se ter perdido. Aquele que nunca se perdeu, o que se manteve fiel à forma, fica preso no ressentimento, incapaz de lidar com as mudanças introduzidas pelo tempo. Esta parábola é fundamental para podermos compreender por que motivo a modernidade, com todas as suas características, emergiu no âmbito do cristianismo. O filho pródigo é o arquétipo ancestral do homem moderno, o que faz de cada um de nós filho pródigo em busca de si mesmo.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Caçar o tigre

Charles Lapicque - Chasse au tigre (1961)

Pode-se imaginar a caça ao tigre como um momento fundamental de toda a vida espiritual. Não no sentido literal, mas aquilo que no homem pode ser simbolizado pelo tigre, o seu lado selvagem e perigoso. Mas mesmo aqui, caçar o tigre não significa matá-lo ou sequer domesticá-lo. Caçar o tigre significa fazer dele a energia propulsora que permite vencer a gravidade e tornar-se livre como o vento, esse vento que sopra onde quer.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (564)

Tal-Coat - [Paisaje] (1954)

564. estas paisagens

estas paisagens
maculadas
pelo ocre do ócio
pela oxidação
das tintas
crescem nas margens
do sangue
e ondulam na
cegueira de uma
metáfora
ao desaguar
no porto da solidão

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Metamorfoses

James Whistler - Nocturne: Blue and Silver-Cremorne Lights (1872)

Há uma verdade à luz do dia e uma outra à luz da noite. Não são apenas as coisas que sofrem metamorfoses, que se transformam naquilo que não são. Também a verdade é itinerante, tomando sempre novas figuras. Os homens são tentados a contrariar os seus sentidos, em crer numa imutabilidade eterna da verdade. Esta, porém, sofre de uma inquietação estrutural e nunca se reconhece a não ser nesse acto de se metamorfosear.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (291)

André Masson - Le Couvent des Capucins - Céret (1919)

montanhas azuis
no verão desmesurado
monge em oração