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domingo, 28 de maio de 2017

Viagem para si

Will Faber- Buscándome a mí (1968)

Buscar-se a si mesmo é como a tarefa de retorno de Ulisses à pátria. Múltiplos são os obstáculos que, durante a vida, se interpõem no caminho daquele que empreende a viagem de regresso si. Muitos nem se apercebem que há uma viagem a fazer. Outros soçobram no caminho vítimas de ilusões. Por fim, há os que empreendem a viagem para Ítaca, sabendo-a sempre ali e sempre distante. Sabendo que a Ítaca que encontram, sendo real, ainda é uma imagem e um símbolo da Ítaca a devem chegar. Descobrem que a viagem é infinita.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A conversação

André Hambourg - La conversation (1929)

Na vida espiritual, tomada numa ampla acepção, a conversação, como outros aspectos da vida dos homens, apresenta um ambiguidade essencial. Tomada como bavardage, tal como os franceses a entendem, ela é um factor de inibição do caminho, uma distracção, no melhor dos casos, e uma alienação, nos piores. No entanto, é fundamental como o encontro entre espíritos, encontro onde se inter-animam e se fazem progredir no caminho. É também estrutural enquanto diálogo consigo mesmo, onde a conversação estabelece a ponte entre as partes cindidas do self e lhe permite aperceber de uma unidade anterior a toda a cisão que o espírito sofre no mundo.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Encerrar-se na sua concha

Georgia O'keeffe - From a Shell (1930)

Na concha simboliza-se o ambiente protegido e o refúgio inexpugnável. De que se protege aquele que se encerra na sua concha? Da ameaça exterior, das solicitações do mundo? Em aparência sim. Aparências, porém, são aparências e, muitas vezes, ocultam a realidade. Na verdade, procura-se protecção contra o vento. Não o elemento físico, mas aquele vento que sopra onde quer e tem o condão de confrontar o homem com aquilo que ele é. Ao encerrar-se na sua concha, o homem protege-se de si mesmo e da sua verdade.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

A verdadeira face

James Ensor - O teatro de máscaras (1908)

Raramente se pensa, ao valorizar a dimensão ética da pessoa, a presença nela, como pertencente ao seu núcleo, da máscara social - a dimensão da persona - que possui o duplo efeito de proteger o indivíduo nos seus contactos sociais e de distorcer a verdadeira face que se esconde sob a máscara e aniquila a autenticidade.  Deste ponto de vista, a pessoa é já uma inautenticidade. A vida espiritual é a viagem que conduz da máscara à verdadeira face, da pessoa ao si-mesmo. O perigo, porém, é grande, pois a verdadeira face pode ser sentida pelo outro como uma ameaça terrível e pelo próprio como uma fragilidade inultrapassável.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

O enigma

Chema Cobo - El desconocido de si mismo (1984)

Há um momento na vida em que nos confrontamos com o enigma que somos. Desconhecidos de nós mesmos, empreendemos a viagem em busca dessa pátria feliz, talvez o paraíso, em que descobriríamos a nossa autêntica identidade, o ser que somos. Se formos persistentes, porém, descobriremos o mais importante. Não há nada para conhecermos, nenhum enigma para revelar. Há que viajar e isso é tudo.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

A janela fechada

Pablo Picasso - La ventana cerrada (1899)

Talvez seja por medo do exterior que o homem se fecha em si mesmo. A janela fechada simboliza essa oclusão. O fechamento da janela não resulta, contudo, de uma decisão. Ele é, mais que tudo, o resultado de um processo que começa talvez antes do nascimento. Toda a educação visa solidificar o fechamento de si e reforçar as portadas da janela. Por vezes, alguém, sem saber claramente a razão, arromba a janela e sai de si. É aí que começa a arte, a filosofia ou a experiência mística. Todas elas são o fruto de um acto de violência, de uma insubordinação contra a ordem que encerra o homem na clausura de si mesmo.

domingo, 18 de setembro de 2016

Sobre a camuflagem

Pancho Gutiérrez Cossío - Camouflage (1921)

A camuflagem, em aparência, é um exercício que visa evitar o reconhecimento pelo outro. Fundamentalmente, quando este outro é um inimigo ou um predador. A camuflagem surge, deste modo, com um exercício vital. A sobrevivência depende da arte do disfarce. Rapidamente, a espécie humana transferiu a dissimulação da esfera da luta pela sobrevivência para a da vida social, como se sentisse também nesta uma ameaça. Sem dar por isso, tomou aquilo que é um mero expediente de sobrevivência como sendo a sua própria natureza. Tomamos a máscara, ou o efeito de camuflagem, como a nossa efectiva realidade. No momento em que o homem sente um suspeita sobre a distância que vai entre a camuflagem e a realidade de si mesmo, nesse momento começa a aventura espiritual. Até ali, o que via era apenas e só o animal acossado que também é.

domingo, 4 de setembro de 2016

Do obstáculo

Béla Uitz - Luta (1922)

Na vida material dos homens, a ideia de luta tem um lugar central. Está associada ao esforço com que alguém pretende realizar um projecto, à sua capacidade de ultrapassar obstáculos e de imprimir, no mundo, a sua impressão. A capacidade para lutar é vista como virtuosa. Na vida espiritual, porém, a necessidade de lutar é ainda o sintoma de um excesso de materialidade e de uma visão de si oposto ao outro e ao mundo. Não se trata de vencer obstáculos, mas de compreender que não existe nem aquele que quer ultrapassar o obstáculo nem o obstáculo a ser ultrapassado. Essa cisão é ainda uma ilusão da vida material. Obstáculo e obstaculizado são uma e a mesma coisa. Não há impressão alguma a imprimir no mundo.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Voltar a si

Mery Sales - Ensimismados (1996-99)

Voltar-se para si mesmo - encerrar-se em si - pode ser sinal de uma patologia, o resultado de uma incapacidade de lidar com os outros e o mundo, o medo do estranho e do ameaçador. O ensimesmamento pode ser, contudo, um processo de cura espiritual, um retorno a si para ultrapassar as múltiplas cisões que o mundo impõe. Mais do que um encerrar-se em si será um voltar a si, um retorno a casa para, de um outra forma e ultrapassada a fragmentação, viver com os outros e no mundo. Onde reside o perigo reside também a cura.

domingo, 3 de julho de 2016

Fechar a porta

Fernand Khnopff - I Lock my Door upon Myself (1891)

Há no culto moderno do self, iniciado por Descartes com o cogito como princípio, ainda que garantido por Deus, da certeza inabalável, uma infantilidade que raramente é notada. O centramento sobre si mesmo é uma característica da infância. A maturidade chega pelo descentramento, pela descoberta de que não se é deus, e, de forma mais radical, pela descoberta de que, na verdade, não se é nada. Esta última descoberta pode ter efeitos paradoxais. Pode gerar um grande alívio, uma libertação, ou pode conduzir a que o self se refugie em si mesmo, na sua nulidade, e feche a porta, para que a sua certeza infantil resista ao confronto com a realidade.

quarta-feira, 30 de março de 2016

Para lá dos manifestos

Boris Kustodiev - Reading the Manifesto (1909)

A vida do espírito começa para lá de todos os manifestos. Um manifesto é um exercício exacerbado de ruído, a concentração de desejos e ilusões. A vida do espírito brota do silêncio, da solidão, da pura presença perante aquilo que é. O manifesto dirige-se ao rebanho e é sempre a afirmação do poder, ou da sua ânsia, de um pastor. A vida do espírito repousa na singularidade de cada um, quanto muito no encontro de duas singularidades. Nela, não há lugar para manifestos.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Trabalho de pioneiro

Pekka Halonen - Pioneers in Karelia (1900)

A vida do espírito implica também ela um trabalho de pioneiro? Sim, claro, pois ela é um desbravar de um caminho. Contrariamente, porém, a outras dimensões da existência, a vida espiritual não é um trabalho de equipa. O pioneiro desbrava o caminho na mais pura solidão. E porquê em solidão? Porque esse caminho é o seu caminho, só a ele diz respeito, só ele o poderá trilhar. Ele é o pioneiro de si mesmo.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Um problema de compreensão

Paul Ackerman - Dis-mois, compreds-tu quelque chose

A preocupação com a compreensão do mundo, com aquilo que se passa fora de nós, funda-se na crença ingénua de que o objecto da compreensão é transparente e acessível em si mesmo. A compreensão do mundo, porém, assenta na compreensão de nós mesmos. Aquilo que compreendemos no mundo exterior não é apenas mediado pela nossa auto-compreensão. É uma projecção dessa mesma auto-compreensão. Aquilo que eu vejo no mundo diz mais sobre mim do que sobre o mundo.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Estátuas de sal

Rafael Canogar - Arqueologia III

A psicanálise terá sido uma das invenções que mais influência exerceu - e exerce - no mundo ocidental. Propõe uma espécie de salvação pelo exercício da arqueologia. O paciente é convidado a escavar no seu passado remoto para encontrar o conflito que se manifesta na sua patologia. O processo, porém, é perturbante pois traz à memória o destino da mulher de Lot. Ao olhar para trás foi transformada em estátua de sal. Quando passamos da arqueologia pré-histórica para a arqueologia pessoal, em vez de encontramos a salvação, corremos o risco de sermos transformados em estátuas de sal.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Combate enigmático

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

A vida, segundo a longa experiência do senso comum, é uma luta sem fim. As tradições religiosas vêem-na, muitas vezes, como milícia. O mundo dos homens não deixa de ser um palco permanente de conflitos. Luta, milícia, conflito, toda essa experiência fala-nos do combate, mas de um combate enigmático. Mesmo quando lutamos contra a natureza, mesmo quando conflituamos com o próximo, é ainda esse combate decisivo e misterioso que travamos, o combate contra nós mesmos. É ele que se manifesta em todos os outros, que os anima e os faz brilhar. É esse combate que queremos ocultar de nós, alienando-nos nas guerras do mundo. É esse combate, porém, que contém o enigma que somos.

domingo, 14 de junho de 2015

A ocultação de si

José e Togores - Figura escondiéndose (1925)

Há duas formas como os seres humanos se entregam à ocultação de si. Uma, aquela que é mais compreensível, em que tentam afastar-se, de forma mais ou menos ostensivo, da claridade que é o espaço público. Não querem ou não suportam, por diferenciados motivos, que os holofotes incidam sobre a sua pessoa. Esta ocultação não é a fundamental e, na verdade, não é diferente do comportamento antagónico, o daqueles que ostensivamente se mostram na clareira pública e exigem que os holofotes incidam sobre eles. A segunda ocultação é aquela em que a própria pessoa oculta aquilo que há de essencial em si, aquilo que está para além da máscara que a pessoa é. Geralmente, esta ocultação é tão forte que os seres humanos se sentem reduzidos à sua máscara, e de si não sabem mais do que os revérberos desta máscara no espelho social.

quarta-feira, 25 de março de 2015

A viagem como composição

Piet Mondrian - Composición VII (1913)

Tudo é composição, arranjo, entrelaçamento de fios, cruzamento de linhas e formas, conjugação de notas. Também a viagem - aquela que conduz o homem de si a si mesmo, aquela que, ao apelo da voz interior, o leva a responder eis-me aqui - é uma composição. A princípio, o viandante força os elementos a cruzarem-se e quer fazer a sua própria composição, quer ser o autor de si mesmo. O tempo, porém, precipita-o na errância. Perdido, abre mão da sua autoria, para que uma outra, mais decisiva, se manifeste e a composição se torne fluida, leve, como se fosse a expressão autêntica daquele que é.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Uma viagem para si

André Louis Derain - Bacchic dance (1906)

A dança báquica é, na antiga tradição dos gregos, mais do que o símbolo da viagem, mas a realização da própria viagem. Mais do que o furor orgiástico, que tanto seduz a infantilidade moderna, é a realização do caminho que vai do corpo que se tem ao ser que se é. Pela dança, pela entrega plena ao frenesim dionisíaco, rompe-se o dique que separa a bacante da sua própria natureza, permitindo-lhe então a experiência plena de si mesma.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

O espelho e a face

JCM - Speculum I (2014)

Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Desde que me tornei homem, eliminei as coisas de criança. Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido. (Paulo, I Cor 13: 11-12)

Quem sou eu? Esta interrogação não é apenas o sinal de uma busca de identidade. É o sintoma de uma confusão. Aquilo que sei de mim resulta apenas do que vejo num espelho. Esta visão confusa não é um mero problema epistemológico, mas um indicador do grau de maturidade. A analogia trazida por Paulo remete explicitamente para isso. Vejo-me ainda como se vêem as crianças. A viagem do viandante é aquela que o conduz desta visão em espelho - toda a especulação é assim vista como um estado infantil da existência - para uma visão face a face. A viagem é uma transição da menoridade para a maturidade, a qual é esse momento em que me vejo tal como sou visto, em que me vejo face a face e descubro a minha própria verdade.

sábado, 23 de novembro de 2013

A configuração de si

Albert Gleizes - Figura (1914)

Talvez toda a viagem - e a viagem não é outra coisa senão a vida - a que o viandante se propõe seja um trabalho de configuração. Configurar significa dar forma a qualquer coisas, dar-lhe, literalmente, figura. Ao avançar na via, ao inventar a senda por onde caminha, o viandante está, muitas vezes sem o saber, a traçar uma figura, a configurar. A configurar o quê? Ao caminhar o viandante tece a sua própria figura. Não aquela que ele imaginou ser a sua, nem aquela que ele desejou que fosse, mas a que o caminho - com as suas graças e, também, as suas desgraças - lhe impôs. A figura que a sua liberdade se destinou a traçar para si.