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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

No porto de abrigo

Jean Édouard Vuillard - O porto de Honfleur (1919)

Não há para o viandante porto que seja o fim da viagem. Por mais que deseje recolher a terra firme e aí estabelecer o seu domínio, o viandante deve, após breves instantes de descanso em abrigo seguro, voltar a zarpar. Não lhe cabe instituir fronteiras nem fundar um reino. Fronteiras são irrisão e o reino a que pertence não é deste mundo.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A música das esferas celestes

Francisco Iturrino - Romaria (1905-1909)

A tradição religiosa ocidental, cujo núcleo é o cristianismo, é atravessada por uma ambiguidade que nos pode deixar perplexos sobre o significado da vida neste mundo. Por um lado, ela é um vale de lágrimas onde os homens suspiram, gemem e choram. Por outro, é uma romaria, onde a peregrinação e a festividade se combinam num arraial em perpétua deslocação. Facilmente se percebe como estas duas concepções reflectem a visão do inferno e a do paraíso celeste. Mas isso é secundário. O essencial é compreender que as visões não devem ser opostas mas vistas como complementares. Sim, a vida pode ser um vale de lágrimas - para muitos, pelo sofrimento recebido, uma antevisão mesmo do inferno - mas aquele que peregrina, que vai na romaria, atravessa esse vale de lágrimas dançando e cantando, pois aquilo que chama por ele e o guia soa-lhe no coração como a mais pura e envolvente música. Provavelmente, a música que o velho Pitágoras dizia provir da revolução das esferas celestes e para a qual o hábito nos tornou surdos.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Aprender a escutar

Paul Ackerman - Discussão

A discussão e o debate são, por certo, virtudes da vida social e do espaço público. Fazem parte da harmonia social, onde a violência dos actos é substituída pela troca de palavras e ideias. Mas aquilo que é uma virtude social pode transformar-se num obstáculo para aquele que, concedendo ao mundo o que é do mundo, procura um caminho que vá para além dos negócios mundanos. Aqui a discussão perde o sentido e começa a dura disciplina da escuta. Aprender a escutar é então o essencial.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

As imagens do espírito

Giorgio Morandi - Paisagem (1913)

Acreditamos facilmente que, ao vermos uma certa paisagem, a imagem que construímos é uma projecção do mundo no nosso espírito, de um mundo que entra em nós pelos olhos. Esta crença kantiana na passividade dos sentidos impede-nos de perceber que a visão é um portal de duplo sentido, que também o conteúdo do espírito se projecta no mundo, através do olhar, fabricando paisagens que esse mesmo olhar traz depois para dentro de si. Não são inócuas para a sanidade do mundo as imagens que o espírito fabrica. Não são indiferentes para a viagem que espera o Viandante, pois são elas que podem tornar o caminho mais ou menos transitável.

domingo, 2 de junho de 2013

Compor mundos

Wassily Kandinsky - Composição n.º 5 (1911)

Estamos, desde que nascemos, demasiado treinados para vermos em nós e naquilo que nos rodeia um mundo ordenado. Isso é de tal maneira assim que não suspeitamos que apenas acedemos a uma composição de elementos heteróclitos, acidentais e, muitas vezes, fantasmagóricos. A educação que os neonatos recebem desde o ventre materno visa treinar o olhar e o modo de estar na vida para essa organização, de tal maneira que, com o decorrer do tempo, acreditamos que as coisas são tal e qual nos aparecem e que a realidade é aquilo que aprendemos a ver e que o único caminho de vida é o que nos foi ensinado (com uma ou outra alteração de percurso, claro).

O primeiro passo do viandante talvez seja descobrir que a forma como compreende o mundo é uma composição que lhe foi transmitida pela educação, mas uma composição entre outras possíveis, uma composição útil mas que em si não tem outra verdade que não a utilidade quotidiana. A via, a partir dessa compreensão, torna-se, então, um caminho de descomposição e de recomposição, de um desfazer de mundos para os refazer, nessa experiência que nos afasta deste mundo que não é o nosso e nos conduz, se não nos perdermos na errância, à pátria perdida.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

De crepúsculo em crepúsculo

Pierre Bonnard - Crepúsculo (1892)

O crepúsculo não é apenas a claridade que permanece depois do pôr-do-sol ou que antece a alvorada. Por analogia, crepúsculo designa a condição do homem. O homem possui uma consciência crepuscular. Isto significa que ela não é uma consciência obscura ou absolutamente tenebrosa. Mas significa também que a luz da sua consciência está longe, muito longe ainda, da mais pura luminosidade. O grande equívoco do Iluminismo foi pensar que, com o predomínio da razão, o homem transitava de uma consciência crepuscular para uma consciência luminosa. Essa não é, contudo, a natureza do homem na Terra. Enquanto envolto na vida deste mundo, o homem não progride das trevas para a luz, mas desloca-se, infinitamente, de crepúsculo em crepúsculo.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

A atenção ao mundo

El Greco - Vista del Monte Sinaí (1570-72)

Insisto: a sede da mística não é na estratosfera, mas sobre esta "terra dos homens", mesmo se o místico tem a audácia de nela escalar os cumes mais altos. Não sonha em ir para a lua, onde não há atmosfera, mas tenta subrir sobre o Tabor, o Sinai, sobre o Meru, sobre o Kailãsa, sobre o Sumbur (Semeru), sobre o Haraberazaiti (Harbuz), etc.: isto é, os lugares terrestres onde céu e terra se encontram. (Raimon Panikkar, Mystique plénitude de Vie. p. 209)

A vida do espírito não é um acto de cobardia e de fuga ao mundo. Pelo contrário, é o modo de vida onde se exige a maior das atenções à vida na Terra, pois esta é a condição do ser humano. Atenção não significa alienação e estranhamento perante sua própria natureza de ser dotado de espírito. Significa, em primeiro lugar, compreender que também a Terra e as coisas na sua materialidade contêm, para não dizer que são, o espírito. Significa, em segundo lugar, que a vida do espírito se alicerça na materialidade do corpo humano, nos poderes e fragilidades da carne. Significa, em terceiro lugar, que qualquer ascensão espiritual implica o reconhecimento de que a materialidade corporal do ser humano está submetida à lei da gravidade.

O místico (ou espiritual) deve então ser o mais desperto dos homens para as realidades terrestres. Sem essa atenção e esse estar desperto, não há monte a que ele consiga ascender, não haverá possibilidade de trilhar o caminho que o leva ao ponto onde a Terra e o Céu se encontram, não encontrará o lugar em que Deus e o homem se tocam. O desprezo pela finitude da terra e pela fragilidade do corpo terá como contrapartida o encerramento na caverna e a prisão no corpo, como já Platão bem o sabia.

sábado, 14 de abril de 2012

A obscuridade mundana

René Magritte - Les Amants

Há sempre nos acontecimentos mundanos qualquer coisa de obscuro. Muitos deles são, por natureza, sombrios, como se fosse impossível mascarar uma certa rudeza constitucional das pessoas que neles participam. Noutros, mais glamorosos ou mais brilhantes, essa rudeza não é tão crua. Mas basta raspar um pouco com a unha - e não é preciso que esteja particularmente afiada - para que uma sombra se desenhe sob o nosso olhar. Um pouco mais de atenção e a sombra cresce, ganha peso, torna-se noite escura. No entanto, quantas vezes a natureza olhada a partir da nossa solidão mantém um brilho e um vigor inalteráveis? A questão que nasce na mente do observador está assim ligada não ao mundo e à natureza mas ao mundano, essa forma própria dos seres humanos perverterem o paraíso. A sombra projectada é a figuração da egoidade humana, esse desejo de ser alguma coisa, esse querer emergir do nada que se é. A obscuridade mundana nasce dessa incapacidade dos homens perceberem-se enquanto meros grãos de areia perdidos e errantes num universo infinito.

domingo, 29 de novembro de 2009

Caos

O caos é o símbolo do mundo. Mas não foi ao mundo que Ele enviou o Filho? Não foi nele, mundo, que o Filho peregrinou, mesmo que a sua peregrinação também tenha sido uma peregrinatio ad loca infecta? Não foi ao mundo que fomos enviados para que, em nosso peregrinar, exaltemos Aquele que não é deste mundo? O caos é apenas a matéria que espera o nosso operar ordenador, que nunca será apenas nosso. Nele, caos, também estão os deuses.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O mundo

O mundo não é uma ameaça à vida do espírito. Apenas a forma como se está no mundo a ameaça. Não vale a pena fugir para o deserto ou encerrar-se na clausura. Também aí está o mundo. Está, talvez, de uma forma mais aguda e dilacerante. O mundo é a habitação do homem e foi dado a este para que ele aí estivesse e permanecesse não num lugar hostil, mas como se estivesse em sua própria casa. Fugir do mundo é assim fugir da casa que herdámos. O problema que nasce então é o da forma como habitamos aquilo que nos foi dado habitar. A ideia de dádiva é já o primeiro sintoma de como devemos aí estar: cuidar do que nos foi doado. Mas esse cuidar não significa que o espírito se prenda à coisa doada, mas se erga ao doador e, na luz que deste emana, olhar cada gesto com que preenchemos o mundo.