terça-feira, 30 de julho de 2024

A memória do ar (32)

Antoine Chintreuil, The Rain Shower, c. 1868

A chuva é uma anamnese líquida do ar. Desce dos céus e toca a terra com a promessa dos sonhos, o desejo dos frutos e o querer secreto que anima as forças que mantém o universo no caminho esboçado no início dos tempos. A chuva é o ar liquefeito na memória da natureza.

domingo, 28 de julho de 2024

Geometrias de fogo (32)

Fred Kradolfer, sem título, 1930 (Gulbenkian)

O fogo solar reparte-se na Terra, usa geometrias ocasionais para levar a luz e a sombra ao lugares em que os homens as esperam. Cansado, recolhe-se no ilimitado dos céus e oculto distribui as trevas como quem descansa e respira lentamente, até que, recomposto, volte à tarefa que um fado inexorável, na mecânica do universo, lhe destinou.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Sonetos de Verão (4)

José de Almada Negreiros, sem título, 1941 (Gulbenkian)

 Do Verão, saberemos nós a cor,

a certeza das tardes e das noites?

Saberemos da Lua a aparência,

quando Julho progride na jornada?

 

Estações são mistérios ilegíveis,

pelos anjos escritas num caderno

onde a luz resplandece e nos cega,

onde a noite cintila no silêncio.

 

Raparigas perpassam nos meus olhos,

trazem vestes de Estios muito antigos,

eram jovens e belas na memória,

 

eram filhas dum tempo onde Julho

refulgia nos seus olhos e ardia

na secreta paixão nos meus velada.

 

Julho de 2024

quarta-feira, 24 de julho de 2024

A sombra da água (32)

Henry Peach Robinson, Atlanta, 1896

A água da memória desce como uma sombra. Envolve mundos que desapareceram, destinos consumados, a certeza dos desejos triunfantes e dos que se perderam na mecânica dos corpos. Se abrirmos a sombra, como quem abre um embrulho delicado, descobriremos os mundos que vivem no silêncio dos genes herdados na hora em que fomos concebidos.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

O Espírito da Terra (32)

Nicolaus Schindler, Puszta-Motiv, 1908

A planura com que por vezes a terra se oferece aos homens é o sinal da luz que a habita. Ali, vibra a corda do refúgio e ecoa a voz de um chamamento, aquele que traz os homens da poeira do nada ao fogo da existência e que, extinto o incêndio, oferece a morada para o  cansaço do corpo.

sábado, 20 de julho de 2024

Sonetos de Verão (3)

Ana Hatherly, sem título, 1971 (Gulbenkian)

O livor destes dias faz de Julho

o mais ímpio dos meses de Verão.

Claras nuvens no céu são o prenúncio

do jardim onde as horas se recolhem.

 

Escondeu-se o Sol e dardejou

sem clemência os homens impudentes.

Vozes clamam ao longe, fatigadas,

rasgam turvos silêncios em sua dor.

 

Escondi o meu corpo na caverna

onde moram os sonhos e dormi,

esquecido dos dardos invencíveis.

 

É o áspero rumo que me leva

desta terra sem ruas, sem rumores,

ao local onde morre o Sol no mar.

 

Julho de 2024


domingo, 14 de julho de 2024

Signo sinal 19. Diluição

Rui Filipe, Baixa-Mar, 1973 (Gulbenkian) 

Tudo é sinal, a indicação de uma outra coisa, a promessa do que está ausente, indício do que passou. E nessa árdua tarefa de assinalar, o sinal dilui-se, perde a sua materialidade e flui como a água do mar batida pelo vento, transformada em ondas que trazem e levam as secretas mensagens que o oceano estende pelo vazio dos grandes areais.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Impressões 119. Self

João Dixo, Quem pinta, pinta-se, 1978 (Gulbenkian)

Sou a impressão de mim próprio, e nessa impressão está tudo o que sou, pois o self não mais do que a impressão que o impressor imprimiu na clareira do mundo.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Haikai do Viandante (437)

Karl Schmidt-Rottluff, Lua de Agosto, 1963

As luas de Agosto

são promessas luminosas.

Nas trevas a cor.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Micronarrativa (67) Cegos

Júlio Pomar, Cegos de Madrid, 1957-59 (Gulbenkian)

Formam uma irmandade e caminham nas ruas da grande cidade. Une-os a escuridão, o desconhecimento das cores, a impossibilidade de destrinçar luz, sombras e trevas. Move-os a esperança de, presos à sua fraternidade privada da cintilação do mundo, encontrem nas ruas a pedra de ouro que lhes trará a luz mais pura que habita no fundo de cada um.

sábado, 6 de julho de 2024

Sonetos de Verão (2)

António Dacosta, Sonho de Fernando Pessoa debaixo de uma latada numa tarde de Verão, 1982 (Gulbenkian)

 O tormento dos dias de Verão

caiu lesto nas sombras da cidade.

No silêncio das tardes resplandece

luminoso o prenúncio da revolta.

 

Tão pesado tributo enlouquece

quem do Norte partiu em busca plácida

de outras terras sem gelo, de eternas

noites cálidas, ricas em ardor.

 

Ocultaram-se os homens no jardim

onde o tempo ameno abre os braços

e mitiga a revolta dos perdidos

 

no frio fogo do Sul, na vã loucura

de esperar salvação nesses lugares

onde tudo se perde sem perdão.

 

Julho de 2024


quinta-feira, 4 de julho de 2024

O sal do silêncio (115)

Manuel Botelho, Areia e Sal - Igrejas Silenciosas, 1987 (Gulbenkian)

Não é a igreja que produz o silêncio, mas é este  que se transforma em local de culto. Protege-se com a couraça de paredes e telhados, curva-se diante do altar para que a voz do que que não tem voz possa ecoar e tornar-se o sal do mundo.